sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Stuttgart

Nunca fiz isso, juro. Mas o que tem demais? Essa carta deve ser para alguém que morou aqui há muito tempo. É uma casa velha e que eu saiba está alugada há vários anos. Talvez até o destinatário já esteja morto.

E também é uma carta da Alemanha, achei isso muito bacana. Provavelmente nunca vou ter dinheiro para ir lá. O mais longe que fui foi ao Paraguai, e olha que há dois anos.

Fiquei pensando nessas coisas uns dois dias, mas não tive coragem de abrir. E se o cara aparecesse aqui um tempo depois? “Por favor, sou o antigo morador, vim pegar minhas correspondências”. “Pois não, são essas aqui abertas, não repara não”. No mínimo ele iria me xingar, no máximo me processar.

Passaram três dias. Que se dane. Olha só, é uma carta de amor. Fala de saudade, arrependimento, pede para ele voltar a morar com ela. O de sempre. Tem até uma foto da vagabunda, bonitinha, mas não sei se vale a pena. Um pouco magrinha demais para meu gosto. Bom, tanta aporrinhação por nada. Amassei e joguei fora.

Quando voltei do trabalho no dia seguinte, na porta de casa uma surpresa estava me esperando. A alemãzinha.

- Oi, por favor, eu estou procurando o Sérgio.

- Aqui não mora ninguém com esse nome – esse era o nome do cara da carta.

- Mas esse é o endereço dele... eu mandei uma carta para cá, da Alemanha. Você recebeu?

- Não vi carta nenhuma, não – dava para perceber que ela estava aflita.

- Por favor, você tem que saber onde ele está. Eu vim da Alemanha só para ver ele, avisei na carta.

- Olha, essa é uma casa alugada. Esse cara deve ter mudado não sei quando. Eu sou o atual morador faz uns 4 meses – merda, esse aviso de que ela vinha devia estar no final da carta, mas eu nem tive saco para ler tudo, senão tinha ido dormir em outro lugar hoje.

- Me deixa entrar, eu quero ver.

Não tive tempo de impedir, enquanto falávamos eu abri a porta e ela aproveitou para entrar como um foguete.

- Eu morei aqui já, vou procurar na casa.

A mulher estava maluca, foi fuçando em cada cômodo da casa sem pedir licença. Eu queria mandar ela sumir, mas fiquei com remorsos. Achei uma bobagem aquela carta, mas ela estava desesperada mesmo.

Ela saiu do banheiro segurando um papel amassado que a besta aqui jogou na lixeira mas esqueceu de colocar na rua para o lixeiro levar hoje de manhã.

- Por que você fez isso? Seu filho da puta! Onde está o Sérgio? Me fala!!!

- Tá, tá certo. Pára de gritar na minha casa. Eu abri e li sua carta sim, desculpa, mas nunca pensei que você fosse aparecer, sei lá, uma carta da Alemanha?! Parece até sacanagem. Mas olha só, eu não faço a mínima idéia de quem é esse Sérgio. Por favor, agora vai embora e pode levar sua carta.

O que eu mais tinha medo aconteceu. Ela desabou no chão e começou a chorar.

- Eu vim de Stuttgart só para ver ele, por favor me ajuda – disse ela soluçando.

Aquilo me deixou sem ação. Já era noite, não sabia para quem pedir ajuda. Se eu fosse na polícia iria levar uma dura dos canas por ter aberto a carta. Também não adiantava ligar na imobiliária a essa hora.

- Olha, moça. se acalma, amanhã eu te ajudo, tá? Agora me diz, onde você está hospedada, eu te levo lá.

- Eu vim direto para cá.

- Mas deve ter parentes, amigos aqui, não é?

- Não, só morei um mês aqui, depois me separei do Sérgio.

- Então fodeu... vou te levar para um hotel que conheço.

- Não, eu estou com medo, me deixa ficar aqui – e foi agarrando meu braço.

- Ô que saco! Tá bom, dorme lá no meu quarto. Eu vou para o sofá, louca da Alemanha!

Falei num tom de voz agressivo, mas ela não respondeu. Apenas levantou, pediu uma toalha, tomou banho. Comeu umas barras de cereais que tinha na bolsa e foi dormir. Ofereci comida, mas disse que não queria.

Também não fiquei animado com aquilo tudo. Tinha um jogo para ver, mas nem quis ligar a TV. Fui dormir cedo no meu sofá duro e pequeno.

Acordei com aquela mulher que eu nem lembrava o nome na carta me beijando. Fiquei assustado com aquilo, mas deixei rolar. Ela me deu uma chave de pernas muito gostosa, fiquei embaixo dela sem conseguir me mexer. Pela primeira vez transei no meu sofá. Que merda de vida, precisou vir alguém da Alemanha para isso acontecer!

Depois acabei dormindo o resto da noite na minha cama mesmo, junto com ela.

Ela se levantou antes de mim e se vestiu. Quando abri os olhos, de pé na minha frente ela me passou um papel que parecia uma passagem de avião.

- Vem embora comigo – tinha a voz trêmula.

- O quê? Para Alemanha? Por quê?

- Eu fiz a loucura de vir até aqui de tão longe, atrás de um cara escroto que eu nem sei se existe mais. Ontem à noite fiz a promessa de que daria para o primeiro cara que visse só de raiva. Você deu sorte, eu saí do quarto e você estava deitado, se estivesse no banheiro, eu teria saído na rua e dado para outro. Foi muito bom, mas vazio. Por isso quero terminar da forma mais maluca possível. Você vem comigo, a pessoa que está predestinada a viver comigo por estar nos lugares e horas certos.

- Você é louca de pedra. Ou está tirando uma com a minha cara?

- Não, é sério. O avião sai depois do almoço.

Então eu olhei o bilhete. Li com calma, o horário de decolagem, o número da poltrona, o portão de embarque, o nome da empresa, tudo. Eu estava começando a querer fazer essa viagem que sonhei quando a carta chegou, por isso inconscientemente procurei alguma coisa familiar naquele papel. Talvez o horário de embarque fosse o mesmo de quando nasci. Ou a poltrona fosse o dia em que o Palmeiras ganhou a Libertadores. Mas não tinha nada, nenhum sinal.

- Tudo bem, eu vou. Mas só por um motivo que lembrei agora. Hoje vence meu aluguel e não tenho dinheiro para pagar.

domingo, 12 de agosto de 2007

Lembre e responda antes de morrer

"Esse é seu último dia de vida, Antenor. Ninguém sabe, mas quando todos estão para morrer recebem a minha visita em sonho. É de sua própria natureza estes serem estranhos, fragmentados e enigmáticos, por isso assumo essa forma de cavalo e quando você acordar não vai se lembrar de mim totalmente, só vai sentir uma sensação nova, que nunca teve durante a vida e que vai te forçar a lembrar de tudo o que fez na sua existência. Esse sonho final tem um propósito para todos, mas você terá que descobrir sozinho qual é”.

A sete palmos do chão agora consigo lembrar completamente desse sonho do cavalo que falava e relinchava, uma das formas misteriosas da morte. Aliás, a memória dos mortos é fantástica, lembro de todos os lugares onde perdi meus guarda-chuvas, de todas as moedas que recebi de troco e, infelizmente, de todas as pessoas que magoei.

O inferno é isso, irmão. Não tem fogo, chifre ou dor. É você carregar para sempre a memória da sua vida, em todos os detalhes. E aqui nesse caixão cheio de vermes não há hipnotismo ou psicanalista para me fazer esquecer as dores. Setenta e seis anos de vida, que no meu caso foram muito mais de erros do que de acertos, tudo isso me martelando sem parar.

“Sua hora chegou, dentro de um minuto você morrerá. Nesse momento de agonia, porém, vocês seres humanos têm direito de responder a uma pergunta, a mais importante da sua existência. Porém, se errarem ou não souberem a resposta, irão carregar o peso das suas lembranças para sempre. Caso acertem, têm a graça de esquecerem tudo desta vida e voltarem numa forma de vida mais evoluída, que não é a do ser humano. Preste atenção: eu tenho o poder de apagar, de consertar o erro mais cruel de sua vida, portanto, me diga qual foi ele.”

Já inconsciente e morrendo, o maldito cavalo veio com o último prego no meu caixão. Eu respondi que minha maior cagada foi ter matado meu irmão por uma dívida de jogo. Era mentira. Não sentia pena dele. Apesar de ser meu irmão, nunca me amou e era ainda pior do que eu. Infelizmente para mim, a morte também sabia o que eu sentia e quem tinha sido meu irmão.

"A resposta está errada. Seu maior erro foi ter corrompido um jovem ator de dezessete anos. Ele perdeu a família e o trabalho pelo vício que você vendia. Numa orgia ele matou a namorada e foi preso. Sua família desmoronou, os pais se separaram e seus irmãos também se transformaram em viciados. O jovem foi estuprado na prisão e morreu baleado numa tentava de fuga. E você sabia de tudo isso.”

Seis anos depois, a cada momento também me lembro desse erro final que me amaldiçoou. Antes de morrer, porém, o cavalo ainda me disse que a resposta certa estava no próprio sonho. Na cultura dos homens, os sonhos com cavalos que relincham sempre significaram conhecer alguém famoso ou importante, que no caso foi o ator idiotinha para quem vendia drogas. Esse foi o sinal dado no sonho e eu nem tinha a desculpa de dizer que nunca tinha ouvido falar desse significado dos sonhos. Minha mãe explicava coisas assim para mim e meus irmãos sempre que acordava e lembrava-se de algum sonho. Com a morte não tem discussão.