domingo, 30 de janeiro de 2011

Ambos fora da realidade

Terminou neste fim de semana na Suíça o Fórum Econômico Mundial 2011. A visão leiga que se tem é a de um encontro de grandes pensadores da economia, governos, empresas e banqueiros. O Fórum é uma organização internacional independente existente desde 1971. Mas se reúne tantas cabeças e tem 40 anos então por que esse encontro anual não impede ou pelo menos ameniza as crises econômicas e financeiras do mundo?

Primeiro porque uma parte de pessoas sempre ganha dinheiro com a crise, bilhões mesmo. Segundo, o Fórum de Davos não é a Meca do neoliberalismo, dos especuladores, de uma classe que não tem nem nome, algo como os ‘supercapitalistas financeiros’ - é um mundo complexo e rápido demais ainda para ser debatido em um fórum de velhos ou diretamente interessado em que quase nada mude.

A crise de 2008 não nasceu de planos de governos ou da ação só de banqueiros, foi e ainda é um fenômeno principalmente especulativo. Governos e parte dos banqueiros podem sim ser chamados de omissos, por não tentarem regular esse novo mundo que está nascendo, e de incompetentes, porque não entenderam essa complexidade.

EUA, Irlanda, Islândia, Inglaterra, Alemanha, França, Grécia, praticamente todos os países ricos ou que financeirizam suas economias da noite para o dia aderiram ao sistema especulativo.  Passaram a gastar e tomar empréstimos à vontade, mas não para investir em áreas como pesquisa e desenvolvimento, mas principalmente em imóveis e consumo.

Parte dos bancos passou a crescer muito, faturar bilhões de dólares e euros, muito em razão da valorização irreal dos imóveis e por causa do crédito imobiliário. Mas toda essa montanha de dinheiro era virtual, transações financeiras no computador. A Irlanda chegou a ter um sistema financeiro que equivalia a oito vezes a riqueza real do país vinda da sua produção.

Ocorre que as pessoas se endividam na esperança de obter lucros futuros crescentes com a venda de produtos e serviços, como os imóveis. Quando as taxas de juros são muito baixas esta busca torna-se muito alta. Na crise, os bancos passaram a emprestar muito, muito mesmo, ou seja, várias operações de alavancagem. Crédito era dado até para desempregados ou pessoas com renda baixa, o pessoal chamado de subprime.

Com a especulação o preço dos imóveis bateu no céu, o que estimulou mais compras e novos empréstimos para pagar os antigos. Mas isso naufragou principalmente por dois motivos diretamente ligados. Se tanta gente toma empréstimos sem nem ter garantias é evidente que o risco de inadimplência é muito alto. Os governos para conter a inflação são forçados a periodicamente subirem os juros. Quando isso ocorreu primeiro nos EUA milhões de pessoas passaram a não ter condições de pagar suas dívidas.

E o outro fator que fez as diversas bolhas pelo mundo explodirem foram os chamados derivativos de balcão. Para o homem comum essa invenção financeira deve parecer uma loucura, mas é algo extremamente comum hoje. Os bancos, seguradoras, hipotecários, vendem entre si os riscos de pagamentos de dívidas. No início do desenvolvimento dos mercados financeiros, os derivativos foram criados como forma de proteger os agentes econômicos (produtores ou comerciantes) contra os riscos decorrentes de flutuações de preços, durante períodos de escassez ou superprodução do produto negociado, por exemplo. Derivativo é um contrato no qual se estabelecem pagamentos futuros com base em variáveis estabelecidas.

Na crise de 2008 as instituições financeiras comercializavam entre si justamente as dívidas que passaram a ter milhões de inadimplentes. Foi aí que bancos começaram a quebrar em cadeia em várias partes do mundo. Como já dito, os derivativos são de uso comum, com operações nas Bolsas de Futuros geralmente para proteção contra variações de preços dos ativos financeiros e das commodities, além de serem regulamentados pelos governos.

A grande mancada na crise é que foram feitas operações diretamente entre os bancos e as empresas, os derivativos de balcão.  Aí é cada um por si – não há regulamentação eficiente disso até hoje no mundo. Esses derivativos de balcão são vendidos apenas com a garantia de um grande retorno futuro – autoridades e agências de classificação de risco não se metem nisso. E assim, enquanto a roda está girando e as pessoas continuam comprando, que especulador não ficaria seduzido a comprar um derivativo de balcão e ganhar muito dinheiro sem levantar uma palha? Se segure na cadeira: após a crise os países calcularam que os derivativos em geral movimentaram em 2007 um total de US$ 700 trilhões! Mais de dez vezes o que o mundo produz de bens e serviços por ano!

Pelo que li sobre o Fórum Econômico Mundial 2011 não se chegou a consenso nenhum sobre a regulação dessa farra financeira. O ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schaeuble, e outras autoridades europeias apenas afirmaram que o pior da crise passou. Banqueiros, claro, fizeram coro, como o presidente-executivo do Barclays, Bob Diamond, e declararam que o euro segue forte. Mesmo assim, Grécia e Irlanda seguem dependentes de empréstimos e Portugal e Espanha parecem serem os próximos.

Davos e o esvaziado Fórum Social Mundial vivem fora da realidade. Não adianta criticar ou lamentar sem ter poder político ou não compreender onde estão as prioridades. Um mundo com um modo de vida alternativo e justo, como prega o FSM, só vai ser possível com isso.  Mas no curto prazo nada deve mudar, o Fórum de Davos que tem mais poder político não deve propor grandes mudanças, até porque não é interesse do capitalismo parar uma máquina de US$ 700 trilhões. Achar o meio termo, esse é o desafio que hoje parece impossível para evitar novas crises.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cético e lírico

"O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha" (1604), de Miguel de Cervantes, "As Viagens de Gulliver" (1726), do irlandês Jonathan Swift, e "Tom Jones" (1749), do inglês Henry Fielding, são três clássicos da literatura universal sobre três heróis ridículos, momentos em que a arte mostrou a extrema miséria dos homens e, talvez por isso, produziu obras de muita poesia. Aqui no Brasil, nos dias atuais, o escritor carioca Carlos Heitor Cony (1926) confessa serem esses os livros da sua formação, aqueles que mais influenciaram suas publicações. Não é uma surpresa, pois desde o romance "O Ventre" (Civilização Brasileira, 1958) ele encara a família e seus conflitos, desafios, perenidade, dramas, ou seja, um conjunto que reflete as desventuras da sociedade.



        O bastardo José Severo é o herói ridículo de "O Ventre", um cínico desencantado com a vida, sem razões e relações de afeto, uma história influenciada pelo filósofo existencialista Jean Paul Sartre. Em 1956, portanto antes de sua publicação, o texto concorreu ao Prêmio Manuel Antônio de Almeida (Romance), promovido pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O júri composto por Austregésilo de Athayde, Celso Kelly e Manuel Bandeira, afirmou se tratar de um grande romance, mas forte demais para vencer um concurso oficial. Nos anos seguintes, o autor insistiu nesse mesmo concurso e foi finalmente premiado, "A verdade de cada dia" (1957) e "Tijolo de segurança" (1958) foram eleitos por escritores como Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz e Antônio Callado.

        "Informação ao Crucificado" (1961), o quarto romance de Cony, é outro momento importante para entender a vida e a obra do autor. Ele é o diário do ex-seminarista João Falcão, uma problematização confessional, irônica e bem-humorada do catolicismo. A fonte autobiográfica é evidente: em 1938, Cony entrou para o Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido (Rio de Janeiro/RJ), fazendo cursos de Humanidades e Filosofia. Saiu pouco antes de ser ordenado padre, pois queria liberdade para pensar.

        Em 1967, "Pessach: a travessia" contou a história de Paulo Simões, escritor burguês de sucesso que acaba entrando na luta armada. Cony também foi um crítico duro e consciente da ditadura militar brasileira, assim como denunciava os dilemas da esquerda. É disto que trata esse livro, também uma analogia com a noite de Pessach, na qual, guiado por Moisés, o povo judaico fugiu da opressão do Egito.

        "Pilatos" (1974), marca o final de um ciclo. Após a publicação do seu nono romance, o autor declarou que jamais voltaria a escrever outro. Não era verdade, pois retornou para os romances em 1995. Contudo, hoje Cony faz uma afirmação que explica um pouco esse intervalo de 21 anos: "Como Thomas Mann, eu também sobrevivi a minha obra". O escritor alemão (1875-1955) escreveu seus principais livros, "Os Buddenbrook" (1901), "Morte em Veneza (1912)", "A Montanha Mágica" (1924), e continuou vivo, porém sem produzir mais obras-primas, por isso dizia que sobreviveu à própria obra. Cony também tem essa opinião sobre si. De fato, entre 1958 e 1974, ele produziu seus melhores livros, ainda não igualados em sua fase mais recente.

        A sensação de "dever cumprido" que "Pilatos" trouxe ao escritor, é justamente a história bem humorada e cruel de um homem que perde o pênis. Leia a seguir um trecho:

       "É difícil - ou inútil - datar o início desta história. Ela está começando hoje, talvez só comece realmente amanhã, mais tarde ainda, ou nunca. Sei que a história existe, está escrita e inscrita em minha carne, mas creio que ela não teve um início, nem mesmo no dia em que resolvi dar um nome ao meu pau.
       Cometo uma falsidade histórica: a história começa no dia em que descobri a existência de um pau entre as pernas, sem me importar com o fato de não ter ele um nome. O certo é que custei a descobrir o próprio pau, e mais certo ainda é que vivi anos sem me preocupar em dar-lhe um nome.
       Não sou exatamente um entendido, mas sem esforço de erudição e memória posso lembrar uma dúzia de nomes, sem apelar para as expressões respeitáveis que figuram nos dicionários e livros de educação sexual. Nenhum deles me agrada. Além de feios, são ambíguos. Órgão, por exemplo, pode ser aquele instrumento tocado nas igrejas. Membro pode ser um membro da Câmara dos Deputados. Vara pode ser uma Vara de Família ou uma Vara de Órfãos e Sucessões. Cacete e pau são quase outras coisas - ou as mesmas coisas -, e caralho tem o inconveniente de ser parecido com carvalho e Carvalho.
       Foi esse, aliás, o primeiro nome que me ocorreu quando pensei em chamar meu pau de alguma coisa. Mas a recíproca funcionou. Se caralho é parecido com Carvalho, Carvalho é parecido com caralho. Tive um amigo que se chamava Carvalho - Pedro Gomes de Carvalho -, e não seria decente utilizar seu nome para designar coisa tão importante e pessoal.
       Cheguei ao nome de Herodes mais ou menos por acaso. Mais tarde descobri razões para o nome e emprego. O primeiro contato com o nome do rei que mandou matar as criancinhas foi num circo, em Lins de Vasconcelos, que naquele tempo era uma terra-de-ninguém entre o Méier e o Engenho Novo.
       Fiquei impressionado com o que vi: um drama incompreensível para a minha idade e ocioso para as minhas preocupações. Uma mulher dançava com véus, um homem barbado comparecia apenas com a cabeça numa bandeja, e um outro, meio sobre o balofo, dava ordens e gritava imprecações que eu não entendia nem fazia esforço para entender. O que me ficou desse homem em particular, e do drama em geral, foi um esplêndido manto vermelho coberto de dourados. Esse manto vermelho passou a significar, para mim, tanto a condição de Herodes como a condição de rei.
       Um dia, na mais baixa adolescência, enquanto me masturbava, olhei a cabeça do pau e notei que ela estava vermelha, granada pronta para explodir. A associação se fez para sempre: rei-manto vermelho-Herodes-pau.
       HERODES.
       Gostei do nome. Parece que o pau também gostou.
       Formamos assim - tal como Batman e Robin - uma dupla dinâmica. Passei a carregar Herodes entre as pernas, provendo-o em suas necessidades básicas. Ele crescia em graça, talento e formosura para o que desse e viesse."
"Pilatos", (Civilização Brasileira, 1974)

Peixes
        Na II Bienal do Livro de Bauru em 2003, Cony discutiu também sua outra profissão, o jornalismo. Desde 1952, ele é um dos principais jornalistas do país. Começou cobrindo as férias do seu pai, o jornalista Ernesto Cony Filho, no Jornal do Brasil. Depois, em 1960, vai para o Correio da Manhã, no qual foi redator, cronista, editorialista e editor. Em 1963, também passa a escrever uma coluna para o jornal Folha de S. Paulo.

        Por críticas ao regime militar, foi preso seis vezes entre 1964 e 1968 (seis também foram o número de casamentos). "O ato e o fato" (1964), é uma coletânea de crônicas políticas publicadas no Correio da Manhã. Quando o Ato Institucional nº. 2 foi decretado, em 1965, o jornalista escreveu uma crônica atacando-o. Isto gerou um atrito entre a direção do jornal Correio da Manhã e a redação. Cony demite-se.

        Em 1968, com um convite de Adolpho Bloch, volta a trabalhar com jornalismo nas revistas do grupo Manchete. Publicou três ensaios biográficos, "Chaplin" (1967), "Quem matou Vargas" (1972), "JK: Memorial do Exílio" (1982), e três livros-reportagem, "O caso Lou - Assim é se lhe parece" (1975), "Nos passos de João de Deus" (1981) e "Lagoa" (1996).

        A volta para a imprensa diária ocorreu em 1993, ao assumir a coluna "Rio" no jornal Folha de São Paulo, vaga no ano anterior com a morte de Otto Lara Resende. Em 1996, passa a escrever aos sábados no caderno cultural da Folha e também a integrar o Conselho Editorial do jornal. São três as coletâneas dessa fase no jornal paulistano, os livros de crônicas "Os Anos Mais Antigos do Passado" (Record, 1998), "O Harém das Bananeiras" (Objetiva, 1999), e "O presidente que sabia javanês" (Boitempo, 2000). Os dois primeiros têm tons autobiográficos (infância no subúrbio carioca, o pai, o seminário), temas políticos e um lirismo culto e desencantado, já o último são duras críticas aos rumos neoliberais e fisiologistas do governo FHC, acompanhadas das charges de Angeli.

        Todos esses anos no jornalismo deram a Cony uma grande consciência crítica da profissão. Ele usa uma metáfora irônica e reveladora para descrever o escritor e o jornalista: "o escritor é um peixe feio do oceano, vive em águas bem profundas, escuras, barrentas, onde é preciso lutar para sobreviver, já o jornalista é um peixinho de aquário, colorido, que faz gracinhas para aparecer, vive cercado de enfeites de plástico e que recebe uma ração diária".

Mila
        Uma das grandes companheiras de Cony viveu com ele treze anos. Tinha um amor muito fiel e puro pelo escritor. Foi tão importante que, depois da sua agonia e morte, ele inspirou-se para voltar a literatura. Foi a ternura simples e desinteressada da cadela Mila que marcou o reencontro do Cony-filho com o Cony-pai em "Quase memória" (Companhia das Letras, 1995), um livro de lembranças de seu pai, Ernesto Cony Filho. É também um "quase-romance", no qual os pequenos gestos ganham dimensão de grande aventura e poesia: um sanduíche de presunto, um prato com deliciosa comida de botequim, o cheiro de manga, o sonho de viajar para a Itália, fazer balões, soltar balões. Memórias do pai sem a intenção de fazer um acerto de contas ou vingança, prática comum nos memorialistas brasileiros, mas sim que mostra a alegria das lembranças e a cumplicidade de um pai com seu filho.

        Foi um retorno especial, premiado em 1996 com o Jabuti de melhor livro de ficção do ano. Ainda neste ano, Cony ganhou o Prêmio Machado de Assis, conferido pela Academia Brasileira de Letras (ABL) ao conjunto da obra.

        Desde então, outros três livros do escritor já receberam mais lauréis: em 1997, Prêmio Nestlé de literatura para "O Piano e a Orquestra" (Companhia das Letras, 1996) na categoria consagrado; em 1998, Prêmio Jabuti de melhor romance para "A Casa do Poeta Trágico" (Companhia das Letras, 1997); e o mesmo Prêmio Jabuti em 2000 para "Romance sem palavras" (Companhia das Letras, 1999). No primeiro, Cony criou, a partir das aventuras do mambembe Francisco de Assis Rodano, um "folhetim cômico-transcendental", os dois últimos são uma volta aos seus temas freqüentes: relacionamentos amorosos espinhosos e a ditadura militar brasileira.

        Ainda em 2000, Cony foi eleito para ABL. Ocupa a cadeira número 3 que pertencia a Herberto Sales.

Pedro matou Paulo
        Alguns leitores reclamam que os livros de Cony têm histórias parecidas e finais inconclusos. Ele concorda com isso, pois gosta de repetir os assuntos de suas obras e não se interessa em dar um término absoluto para suas histórias, ao contrário, ele deixa subentendido que no dia seguinte seus personagens vão continuar vivendo como antes.

        O autor não se considera um "contador de histórias", como geralmente os escritores se denominam. Ele chega a dizer que não dá a mínima para suas histórias, o que lhe interessa são as reflexões que elas vão gerar. Indo mais além, ele afirma que isso ocorre em toda a literatura, isto é, as tramas são muito parecidas, apenas são diferentes os raciocínios originados da leitura. Cita o exemplo de três clássicos, "Anna Karenina" (1875-1877), de Leon Tolstoi, "Madame Bovary" (1856), de Gustave Flaubert, e "O Primo Basílio" (1878), de Eça de Queirós. São praticamente a mesma história, os adultérios de Anna, Emma e Luisa, respectivamente. Mas nem por isso são plágios, pois são de países diferentes e causam reflexões e sentimentos diversos.

        É como se todas as histórias se resumissem a um "Pedro matou Paulo", segundo Cony. Desde as mais remotas narrativas, a literatura oral, os mitos gregos, as parábolas bíblicas, as peças de Shakespeare, sempre existiram relatos de conflitos e amores humanos. É um grande "Pedro matou Paulo" com algumas modificações ocasionais.

        Hoje, em seu último romance, "A tarde da sua ausência" (Companhia das Letras, 2003), Cony volta a escrever sobre a família, dessa vez mostrando o caso entre Henrique e sua cunhada Vera, tendo como pano de fundo a ascensão e o declínio dos Machado Alves. Nas duas últimas partes do livro o autor comete um "erro proposital": repete capítulos anteriores. Não é uma falha de impressão, o escritor quis mostrar que a vida dos personagens se repetiu. De novo, "Pedro vai matar Paulo".

A Frente Ampla
        O próximo livro do autor, já escrito, em parceria com a jornalista Ana Lee, vai ser lançado em novembro. "O beijo da morte" levanta suspeitas sobre as mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart e do ex-governador carioca Carlos Lacerda na década de 70. Eles formavam a Frente Ampla, três fortes personalidades da esquerda (Jango), centro (Kubitschek) e direita (Lacerda), que reuniam praticamente 100% do eleitorado. Num período de nove meses os três morreram. Nenhum deles estava doente e as circunstâncias das três mortes são misteriosas.

        Cony e Lee não conseguem provar os assassinatos, porém os indícios de atentado político são muito fortes. Eles concordam com uma declaração do ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes, numa comissão da Câmara dos Deputados para apurar a morte do João Goulart: "Minha opinião é que os três foram assassinados. Se os fatos não provam isso, azar dos fatos".


Leia a seguir uma entrevista com Carlos Heitor Cony:

Pergunta - Um personagem muito presente nas crônicas do sr. é o compositor mineiro Ary Barroso (1903-1964). Comente esse fascínio.
Carlos Heitor Cony - Na minha geração, na época de menino, quando comecei a ouvir rádio, me interessar por esportes, por música popular, o Ary Barroso era sujeito sem nenhuma comparação com os atuais, nem Caetano Veloso, nem Gil, Chico Buarque, Tom Jobim. Porque Ary Barroso não era só um grande compositor, de outro gênero evidentemente, outro tipo de samba, mas ele era um homem de rádio, televisão, calouros, um homem esportivo, foi ele quem criou a mística do Flamengo. Ele transmitia os jogos do seu time como um torcedor, não transmitia direito, quando tinha pênalti contra o Flamengo ele dizia nem querer ver. Foi um tipo importante, marcou muito, as músicas dele, não as famosas como "Aquarela do Brasil", "Na baixa do sapateiro", mas outras que nem sobreviveram, estão fora de catálogo, eram as mais gostosas, aquelas que nós cantávamos mais, como "Upa-upa cavalinho alazão", eram coisas das nossas brincadeiras, paródias. Marcou minha juventude e, mais tarde, tive a oportunidade de me tornar amigo pessoal dele, um dos amigos que mais me marcaram também.
       O Ary Barroso é tido, com razão, um péssimo letrista, mas geralmente quando as pessoas acertam naquilo que não são boas, aí saem coisas ótimas, como foi a letra de Camisa Amarela. Ele teve grandes letristas como Lamartine Babo, Luis Peixoto, Noel Rosa, mas ele não foi um bom letrista, a exceção foi "Camisa Amarela", que é uma das letras mais perfeitas da música popular brasileira de todos os tempos.

Pergunta - O sr. ainda está escrevendo a biografia de José Lins do Rego?
Cony - Não mais. Quando fui eleito para ABL, no dia seguinte já fui designado para uma das comissões existentes na Academia, justamente a que julga o Prêmio José Lins do Rego, e já existiam mais de 50 livros sobre ele. Eu iria ser jurado, eu e mais cinco acadêmicos, iríamos decidir qual melhor livro. Então, de duas uma, ou fazia o livro e concorria, ou só participava do júri. O premiado foi um livro de Luciano Trigo, que é muito bom, talvez não tão abrangente quanto queria fazer. Aliás, também gostaria de fazer um livro abrangente sobre Ary Barroso.

Pergunta - O sr. já foi preso seis vezes, e destas a mais emblemática foi a dos Oito do Glória (Cony, Mário Carneiro, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, o embaixador Jaime Azevedo Rodrigues, o diretor teatral Flavio Rangel e os jornalistas Antônio Callado e Marcio Moreira Alves foram presos em frente ao Hotel Glória, no Rio, em 1965). Como foi essa prisão.
Cony - Nós íamos fazer uma manifestação contra o regime do Castelo Branco e os organizadores haviam prometido 5 mil pessoas, estudantes e operários. Na hora só apareceram uns dez gatos pingados, e desses dez, oito foram presos. Passamos um mês, mais ou menos, numa prisão. Foi muito bom, nós já éramos conhecidos entre nós mesmos, brigamos muito e temos muita saudade desse tempo.

Pergunta - Li um depoimento do sr. no site da Câmara Federal a respeito da "Mídia, Democracia e Parlamento Brasileiro". Duas das opiniões que o sr. escreve são que não existe um "Quarto Poder" da mídia, ela é apenas uma força, e quem manda na mídia é uma coisa subterrânea, um vírus invisível, o verdadeiro poder. Comente isso.
Cony - Hoje em dia, o verdadeiro poder são impulsos eletrônicos que vão da bolsa de Tóquio para Nova Iorque, de Nova Iorque para Wall Street, de Wall Street volta para Nova Iorque. As bolsas abrem em horários diferentes devido aos fusos horários. Então, a humanidade toda está sujeita a isso, há uma nuvem de 17 trilhões de dólares voando e nós somos vítimas dessa onda, não temos poder sobre ela, ao contrário. Não tem pessoas físicas dominando isso, quem faz isto é o capital internacional, o neocapitalismo no seu ponto mais alto.

Pergunta - Como é o programa "Liberdade de expressão" que o sr. faz com os jornalistas Heródoto Barbeiro e Arthur Xexéo pelas manhãs na rádio CBN, e que neste ano virou livro, "Liberdade de expressão" (Futura, 2003)?
Cony - É um programa bom de se fazer, tenho liberdade, não temos pauta. Nós dizemos o que bem entendemos sobre política, esporte, sexo, religião, e até hoje não deu problema, excetuando um dia em que eu falei num tom marginal, periférico, sobre que nunca se deve confiar muito em japonês, pois eles não são muito claros, riem muito quando a gente vai negociar algo com eles, e isto não quer dizer que estejam aceitando o negócio. Alemão não, eles custam a rir, mas quando apertam a mão está fechado o compromisso. Com o japonês você sai das reuniões sem saber se foi comprado ou vendido. Então, recebi muitas reclamações quando disse isso, da colônia japonesa, do embaixador, enfim, foi a única vez que reclamaram, mas nunca tive censura pelo lado da rádio.

Pergunta - Um fato muito triste e marcante para o senhor foi a morte da sua cadela Mila, em 1995. Foi até um dos motivos principais para o senhor ter voltado a escrever. Gostaria que o sr. comentasse o amor dos animais e dos seres humanos.
Cony - O ser humano, desde quando ele nasce, começa a ser possuído pelos outros. Digamos, uma criança nasce, ela não é só da mãe, é do pai também, juridicamente, fisiologicamente, depois vem o Estado e obriga a reconhecer no registro civil. À medida que a criança começa a crescer, quando tem cinco anos ela já tem os amiguinhos, depois a professora, mais amigos, a namorada, aos 15 anos essa mesma criança terá uma porção de donos. É um amor que se distribui, tem o pai, a mãe, a namorada, um amigo, tem uma história independente para cada, ao passo que os cachorros não. Eles têm uma glândula qualquer que escolhe o dono, e aí acabou, pode ser o maior tirano do mundo, o maior assassino.
       Sobre isso, vi uma coisa impressionante em Frankfurt, quando fui numa feira de livros lá. É uma cidade rica, calçadas monumentais e não tem mendigos. Eu vi um camarada, desses alemãozões, louros, mas só que todo maltrapilho, com uma porção de coisas na calçada, cerveja, um radiozinho, era o único mendigo que havia em toda aquela cidade, e tinha um cachorro. Contaram-me que várias pessoas tentaram tirar o cachorro dele, mas o animal não ia, ficava com o dono. Isso o ser humano dificilmente faz.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Dons e solidão


Filme a rever infinitamente.
O que não é um dom senão também uma maldição. Um destino a cumprir.
The Shining (O Iluminado, 1980) mostra Danny Torrance, criança capaz de prever e rever acontecimentos. Por ser tão diferente ele é solitário e só encontra auxílio em outro paranormal, o cozinheiro Dick Hallorann, um homem também sozinho, mas já resignado com seu destino.
O pai de Danny, Jack Torrance, também é um desajustado, mas sua sina é a falta de qualidades. Tem sérios problemas na família e no trabalho. Para piorar ele também vai sofrer da Síndrome da Cabana, quando pessoas vivendo muito tempo enclausuradas se rebelam umas contra outras.
As atuações dramáticas do filme são impressionantes e traduzem toda a dor dos personagens. Não há escapatória, o destino de todos é terrível. Escolhas ruins e erros do passado cobram sangue.
Há o bem e o mal, mas a luta é desigual e sem vencedores ou perdedores definitivos. O pequeno Danny tem sua infância interrompida e violentada, é o preço a pagar para deter parte do terror que sua família sofre.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Troco bolinhas de gude por palavras


Ele nasceu em Araraquara (1936) e é autor de contos, romances, livros infanto-juvenis, crônicas e biografias. As situações absurdas que seus personagens enfrentam são alegorias de um estado autoritário ("Zero", Brasília/Rio, 1975) ou dos seres sem-rosto de um mundo ultra-urbano ("O homem que odiava a segunda-feira", Global, 1999). Seu último livro, "O Anônimo Célebre" (Global, 2002), é resultado de observações do mundo "fake" das celebridades. Trabalhando como editor da revista Vogue, Ignácio de Loyola de Brandão conhece de perto a busca insana e ridícula dos anônimos pela fama. É uma obra engraçada, sensual e cruel, um verdadeiro (anti)manual para quem quer ser famoso.

        Confira uma entrevista exclusiva que o escritor deu na II Bienal do Livro de Bauru em 2003 a respeito de sua obra e formação:



Pergunta - O pai do Sr., que chegou a publicar histórias em jornais locais de Araraquara e formou uma biblioteca própria, participou da sua formação literária? Ele incentivou o Sr.?
Ignácio de Loyola Brandão - Meu pai influenciou, incentivou e orientou minha obra. Ele lia muito, a biblioteca dele era muito variada, tinha Graça Aranha, Machado de Assis, Balzac completo, enfim, era um homem interessado em livros, interessado na palavra. Ele escreveu alguns contos, publicou nos jornais de Araraquara, e fazia os discursos na igreja, no lugar dos padres. Eu via muito meu pai escrever e ele me orientava dizendo, escreva com poucas palavras, use o mínimo de palavras que você puder e o máximo de idéias que estiverem dentro de algo. Um conselho que até hoje mantenho.
       À medida que fui escrevendo livros e publicando, eu senti nele uma espécie de realização. Talvez o escritor que ele queria ser, o filho estivesse sendo. Então foi sempre uma relação muito legal, muito gostosa, muito bonita, que se prolongou até ele morrer em 1996.

Pergunta - Quando criança, o Sr. chegou a trocar com seus colegas de classe palavras por bolinhas de gude e figurinhas. Como é essa história?
Brandão - Sim, depois até virou um conto, meu primeiro conto, chamado "O menino que vendia palavras", publicado numa revista. Foi um episódio da minha infância, meu pai me ensinou a ler dicionários, eu lia palavras diferentes e anotava. Acabei conseguindo um grande arsenal de sinônimos, palavras que ninguém conhecia. Quando a professora dava trabalhos de sinônimos, nas aulas diárias de português, meus colegas vinham pedir ajuda e eu fazia os trabalhos deles. Mas nunca fiz de graça, trocava por bolinhas de gude, tampinhas, pipas, carretel de linha, gravuras tiradas de jornais ou revistas. Então, no fundo fui profissional desde o início.

Pergunta - Desde muito cedo o Sr. também começou a trabalhar com jornalismo, em agosto de 1952 aos 16 anos, e continua até hoje. Por que escolheu essa carreira?
Brandão - Por uma coisa muito simples, eu gostava muito de cinema, lia muito sobre, críticas, livros, e aí um dia resolvi escrever uma crítica. Mostrei para os meus amigos de escola do Científico, gostaram e passei toda a semana fazer uma crítica para os colegas de escola. Depois, sugeriram-me levar esses textos para o jornal, que publicou. Primeiro foi a "Folha Ferroviária", depois o "Correio Popular", que eram do mesmo dono. Incentivaram-me a continuar, tomei gosto pela crítica. Passei para um jornal diário em Araraquara, comecei a fazer reportagens e entrevistas, adorava aquilo, conhecia gente, ficava andando de um lado para o outro. Eu pensava, esse é um emprego no qual eu não fico fechado dentro de um escritório. Meu pai era ferroviário, trabalhava em escritório, todo dia era a mesma coisa, não queria isso para mim. O jornalismo me deu uma variedade enorme de possibilidades. Comecei e não parei até hoje.

Pergunta - Uma história curiosa sobre o Sr. e o cinema é a respeito de sua grande veneração pelo filme "8 ½" (1963), de Federico Fellini. O Sr. já o teria assistido 53 vezes. Como o cinema influenciou sua literatura?
Brandão - Assisti "Oito e meio" muitas mais vezes. Hoje, já deve ter passado de oitenta. É um filme que eu vejo e revejo, foi muito importante para mim, pois eu descobri a extrema liberdade que o Fellini usou. São vários planos, o da imaginação, do sonho, da realidade, da idealização. No filme, a história de um diretor de cinema que não consegue fazer seu longa-metragem é o tema do processo da criação. Isso me fascinou profundamente.

Pergunta - Recentemente entrevistei o escritor Fernando Bonassi e ele falou da experiência de viver e trabalhar na Alemanha, já que em 1998 ganhou a bolsa do Kunstlerprogramm do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst). Ele adorou viver em Berlim e produziu um livro de contos ("O Livro da Vida"). O Sr. também ganhou essa bolsa e viveu em Berlim, como foi sua experiência?
Brandão - Eu fiquei quase dois anos na Alemanha, mais do que o Bonassi. Fui o primeiro escritor brasileiro a ganhar essa bolsa, foi antes da queda do Muro. Eu vivi na Berlim dentro do Muro, que era realmente uma cidade louca. A experiência não só foi muito boa, como rendeu dois livros, "O beijo não vem da boca" (Global, 1985) e "O verde violentou o muro" (Global, 1984). Este último acabou sendo um best-seller, pois foi o primeiro livro brasileiro que falou sobre o Muro de Berlim, como se vivia dentro do Muro, a paranóia do Muro e tudo mais. Eu diria que foi um dos períodos mais felizes da minha vida o tempo que morei em Berlim.

Pergunta - Na II Bienal do Livro de Bauru o Sr. veio debater literatura e temas relacionados a sua obra com o escritor Antônio Torres. Nos anos 70, vocês dois mais o João Antonio faziam o mesmo, viajando pelo Brasil e discutindo literatura e política durante a ditadura. Que recordações o Sr. tem desse período?
Brandão - Andamos pelo Brasil inteiro, era uma época de ditadura, de repressão, de medo, porque às vezes estávamos falando para uma platéia e a polícia estava junto anotando tudo. De qualquer forma viajamos muito e discutíamos muito mais política e a situação do Brasil do que literatura. Foi um período em que a gente acabou conhecendo o Brasil e isto, claro, se reflete na nossa produção literária.



Obras do autor

Contos:
"Depois do sol" (Brasiliense, 1965)
"Pega ele, Silêncio" (Símbolo, 1976)
"Cadeiras proibidas" (Símbolo, 1976)
"Cabeças de segunda-feira" (Codecri, 1983)
"O homem do furo na mão" (Ática, 1987)
"O homem que odiava a segunda-feira" (Global, 1999) (Prêmio Jabuti de "Melhor Livro de Contos")

Romances:
"Bebel que a cidade comeu" (Brasiliense, 1968)
"Zero" (Brasília/Rio, 1975)
"Dentes ao sol" (Brasília/Rio, 1976)
"Não verás país nenhum" (Codecri, 1981)
"O beijo não vem da boca" (Global, 1985)
"O ganhador" (Glogal, 1987)
"O anjo do adeus" (Global, 1995)
"O Anônimo Célebre" (Global, 2002)

Infanto-juvenis:
"Cães danados" (Belo Horizonte Comunicações, 1977) - reescrito e publicado como "O menino que não teve medo do medo" (Global, 1995)
"O homem que espalhou o deserto" (Ground, 1989)

Viagens:
"Cuba de Fidel: viagem à ilha proibida" (Livraria Cultura, 1978)
"O verde violentou o muro" (Global, 1984)

Relatos autobiográficos:
"Oh-ja-ja-ja" (diário de Berlim, inédito em português)
"Veia bailarina" (Global, 1997) (experiência da recuperação de um aneurisma)

Crônicas:
"A rua de nomes no ar" (Círculo do Livro, 1988)
"Strip-tease de Gilda" (Fundação Memorial da América Latina, 1995)
"Sonhando com o demônio" (Mercado Aberto, 1998)

Biografias:
"Fleming, descobridor da penicilina" (Ed. Três, 1973)
"Edison, o inventor da lâmpada" (Ed. Três, 1973)
"Ignácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus" (Ed. Três, 1974)