terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Troco bolinhas de gude por palavras


Ele nasceu em Araraquara (1936) e é autor de contos, romances, livros infanto-juvenis, crônicas e biografias. As situações absurdas que seus personagens enfrentam são alegorias de um estado autoritário ("Zero", Brasília/Rio, 1975) ou dos seres sem-rosto de um mundo ultra-urbano ("O homem que odiava a segunda-feira", Global, 1999). Seu último livro, "O Anônimo Célebre" (Global, 2002), é resultado de observações do mundo "fake" das celebridades. Trabalhando como editor da revista Vogue, Ignácio de Loyola de Brandão conhece de perto a busca insana e ridícula dos anônimos pela fama. É uma obra engraçada, sensual e cruel, um verdadeiro (anti)manual para quem quer ser famoso.

        Confira uma entrevista exclusiva que o escritor deu na II Bienal do Livro de Bauru em 2003 a respeito de sua obra e formação:



Pergunta - O pai do Sr., que chegou a publicar histórias em jornais locais de Araraquara e formou uma biblioteca própria, participou da sua formação literária? Ele incentivou o Sr.?
Ignácio de Loyola Brandão - Meu pai influenciou, incentivou e orientou minha obra. Ele lia muito, a biblioteca dele era muito variada, tinha Graça Aranha, Machado de Assis, Balzac completo, enfim, era um homem interessado em livros, interessado na palavra. Ele escreveu alguns contos, publicou nos jornais de Araraquara, e fazia os discursos na igreja, no lugar dos padres. Eu via muito meu pai escrever e ele me orientava dizendo, escreva com poucas palavras, use o mínimo de palavras que você puder e o máximo de idéias que estiverem dentro de algo. Um conselho que até hoje mantenho.
       À medida que fui escrevendo livros e publicando, eu senti nele uma espécie de realização. Talvez o escritor que ele queria ser, o filho estivesse sendo. Então foi sempre uma relação muito legal, muito gostosa, muito bonita, que se prolongou até ele morrer em 1996.

Pergunta - Quando criança, o Sr. chegou a trocar com seus colegas de classe palavras por bolinhas de gude e figurinhas. Como é essa história?
Brandão - Sim, depois até virou um conto, meu primeiro conto, chamado "O menino que vendia palavras", publicado numa revista. Foi um episódio da minha infância, meu pai me ensinou a ler dicionários, eu lia palavras diferentes e anotava. Acabei conseguindo um grande arsenal de sinônimos, palavras que ninguém conhecia. Quando a professora dava trabalhos de sinônimos, nas aulas diárias de português, meus colegas vinham pedir ajuda e eu fazia os trabalhos deles. Mas nunca fiz de graça, trocava por bolinhas de gude, tampinhas, pipas, carretel de linha, gravuras tiradas de jornais ou revistas. Então, no fundo fui profissional desde o início.

Pergunta - Desde muito cedo o Sr. também começou a trabalhar com jornalismo, em agosto de 1952 aos 16 anos, e continua até hoje. Por que escolheu essa carreira?
Brandão - Por uma coisa muito simples, eu gostava muito de cinema, lia muito sobre, críticas, livros, e aí um dia resolvi escrever uma crítica. Mostrei para os meus amigos de escola do Científico, gostaram e passei toda a semana fazer uma crítica para os colegas de escola. Depois, sugeriram-me levar esses textos para o jornal, que publicou. Primeiro foi a "Folha Ferroviária", depois o "Correio Popular", que eram do mesmo dono. Incentivaram-me a continuar, tomei gosto pela crítica. Passei para um jornal diário em Araraquara, comecei a fazer reportagens e entrevistas, adorava aquilo, conhecia gente, ficava andando de um lado para o outro. Eu pensava, esse é um emprego no qual eu não fico fechado dentro de um escritório. Meu pai era ferroviário, trabalhava em escritório, todo dia era a mesma coisa, não queria isso para mim. O jornalismo me deu uma variedade enorme de possibilidades. Comecei e não parei até hoje.

Pergunta - Uma história curiosa sobre o Sr. e o cinema é a respeito de sua grande veneração pelo filme "8 ½" (1963), de Federico Fellini. O Sr. já o teria assistido 53 vezes. Como o cinema influenciou sua literatura?
Brandão - Assisti "Oito e meio" muitas mais vezes. Hoje, já deve ter passado de oitenta. É um filme que eu vejo e revejo, foi muito importante para mim, pois eu descobri a extrema liberdade que o Fellini usou. São vários planos, o da imaginação, do sonho, da realidade, da idealização. No filme, a história de um diretor de cinema que não consegue fazer seu longa-metragem é o tema do processo da criação. Isso me fascinou profundamente.

Pergunta - Recentemente entrevistei o escritor Fernando Bonassi e ele falou da experiência de viver e trabalhar na Alemanha, já que em 1998 ganhou a bolsa do Kunstlerprogramm do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst). Ele adorou viver em Berlim e produziu um livro de contos ("O Livro da Vida"). O Sr. também ganhou essa bolsa e viveu em Berlim, como foi sua experiência?
Brandão - Eu fiquei quase dois anos na Alemanha, mais do que o Bonassi. Fui o primeiro escritor brasileiro a ganhar essa bolsa, foi antes da queda do Muro. Eu vivi na Berlim dentro do Muro, que era realmente uma cidade louca. A experiência não só foi muito boa, como rendeu dois livros, "O beijo não vem da boca" (Global, 1985) e "O verde violentou o muro" (Global, 1984). Este último acabou sendo um best-seller, pois foi o primeiro livro brasileiro que falou sobre o Muro de Berlim, como se vivia dentro do Muro, a paranóia do Muro e tudo mais. Eu diria que foi um dos períodos mais felizes da minha vida o tempo que morei em Berlim.

Pergunta - Na II Bienal do Livro de Bauru o Sr. veio debater literatura e temas relacionados a sua obra com o escritor Antônio Torres. Nos anos 70, vocês dois mais o João Antonio faziam o mesmo, viajando pelo Brasil e discutindo literatura e política durante a ditadura. Que recordações o Sr. tem desse período?
Brandão - Andamos pelo Brasil inteiro, era uma época de ditadura, de repressão, de medo, porque às vezes estávamos falando para uma platéia e a polícia estava junto anotando tudo. De qualquer forma viajamos muito e discutíamos muito mais política e a situação do Brasil do que literatura. Foi um período em que a gente acabou conhecendo o Brasil e isto, claro, se reflete na nossa produção literária.



Obras do autor

Contos:
"Depois do sol" (Brasiliense, 1965)
"Pega ele, Silêncio" (Símbolo, 1976)
"Cadeiras proibidas" (Símbolo, 1976)
"Cabeças de segunda-feira" (Codecri, 1983)
"O homem do furo na mão" (Ática, 1987)
"O homem que odiava a segunda-feira" (Global, 1999) (Prêmio Jabuti de "Melhor Livro de Contos")

Romances:
"Bebel que a cidade comeu" (Brasiliense, 1968)
"Zero" (Brasília/Rio, 1975)
"Dentes ao sol" (Brasília/Rio, 1976)
"Não verás país nenhum" (Codecri, 1981)
"O beijo não vem da boca" (Global, 1985)
"O ganhador" (Glogal, 1987)
"O anjo do adeus" (Global, 1995)
"O Anônimo Célebre" (Global, 2002)

Infanto-juvenis:
"Cães danados" (Belo Horizonte Comunicações, 1977) - reescrito e publicado como "O menino que não teve medo do medo" (Global, 1995)
"O homem que espalhou o deserto" (Ground, 1989)

Viagens:
"Cuba de Fidel: viagem à ilha proibida" (Livraria Cultura, 1978)
"O verde violentou o muro" (Global, 1984)

Relatos autobiográficos:
"Oh-ja-ja-ja" (diário de Berlim, inédito em português)
"Veia bailarina" (Global, 1997) (experiência da recuperação de um aneurisma)

Crônicas:
"A rua de nomes no ar" (Círculo do Livro, 1988)
"Strip-tease de Gilda" (Fundação Memorial da América Latina, 1995)
"Sonhando com o demônio" (Mercado Aberto, 1998)

Biografias:
"Fleming, descobridor da penicilina" (Ed. Três, 1973)
"Edison, o inventor da lâmpada" (Ed. Três, 1973)
"Ignácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus" (Ed. Três, 1974)

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