No ano de 2010, no mês de setembro, pouco antes do primeiro turno das eleições presidenciais, começaram a aparecer nos principais jornais e revistas de circulação nacional denúncias contra a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra, ex-assessora da candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff. O caso teve muitas situações descritas na teoria social do escândalo de John B. Thompson, como os aparecimentos de negações e transgressões de segunda ordem.
Esse trabalho primeiro vai explicar as denúncias contra Erenice Guerra, relatar as teorias de Thompson e associar esse caso brasileiro com as idéias do autor inglês.
Laços de família em Brasília
Erenice Guerra foi o braço direito da hoje presidente eleita Dilma Rousseff durante o período em que esta foi ministra. Mas as duas se conheceram apenas em 2002, quando Dilma foi integrar o grupo de transição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na área de energia.
Dilma havia sido Secretaria de Minas e Energia do governo gaúcho de Olívio Dutra e saído recentemente do PDT para o PT. Já Erenice integrava a equipe de advogados da liderança do PT na Câmara. As duas acabaram se conhecendo no núcleo de energia da transição de Lula porque Erenice tinha também um passado na Eletronorte.
O presidente Lula acabou indicando Dilma para ministra das Minas e Energia e Dilma depois indicou Erenice para o cargo de consultora jurídica do ministério. As duas permaneceram quase oito anos trabalhando juntas. Quando Dilma foi para a Casa Civil em junho de 2005, Erenice foi junto como sua assessora.
Dilma ficou nesse cargo até março de 2010, quando se desligou para a campanha à Presidência. Em seu lugar foi escolhida a então secretária-executiva do ministério: Erenice Guerra.
Mas o período de Erenice como ministra foi curto, ela não resistiu às denúncias de tráfico de influência envolvendo ela e seus parentes.
O caso envolveu os três irmãos de Erenice: Maria Euriza Alves Carvalho, Antônio Eudacy Alves Carvalho e José Euricélio Carvalho, que tiveram cargos públicos federais comissionados, mas deixaram os postos em 2008, após o Supremo Tribunal Federal proibir oficialmente o nepotismo. Além disso, um dos filhos da ministra, Israel Guerra, também foi envolvido nas denúncias.
Uma das principais denúncias é de que Israel Guerra teria feito lobby para que a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) liberasse a concessão dos vôos da MTA Linhas Aéreas, que fora suspensa. Mais tarde, a MTA fechou contrato de R$ 19,6 milhões com os Correios, sem licitação, para transporte de carga.
O lobby teria sido feito por meio da empresa Capital Assessoria e Consultoria, na qual são sócios, além de Israel, Vinicius Castro, funcionário da Casa Civil, e Stevan Knezevic, servidor da Anac, então lotado na Presidência. Em troca da intermediação, Israel cobraria uma “taxa de sucesso” (propina) de 6% sobre os contratos, e a própria Erenice teria cobrado o empresário Fábio Baracat, ex-sócio da MTA. A prática teria começado em 2009, ainda com Dilma na Casa Civil, mas supostamente sem o conhecimento da então ministra.
Depois, foi denunciado que como ministra Erenice passou a ter ingerência nos Correios, órgão que boa parte da mídia costuma associar com corrupção em seu alto escalão. O presidente dos Correios, David José de Matos, e a diretoria da estatal teriam aprovado um contrato superfaturado em R$ 2,8 milhões para favorecer outra empresa de carga aérea. A contratação, feita pela nova direção da estatal nomeada pela então ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, manobrou para ressuscitar, em agosto, uma licitação que havia sido cancelada três meses antes pelo comando demitido da estatal.
Os documentos obtidos e divulgados pelo jornal “O Estado de S.Paulo” mostram que a nova diretoria, empossada no dia 2 de agosto, entregou para a Total Linhas Aéreas um contrato de R$ 44,3 milhões. E concluiu o negócio em apenas duas semanas.
Os outros casos que a mídia noticiou envolveram fatos mais remotos ligados a Erenice e/ou seus parentes. Por exemplo, Em 1997, Erenice Guerra teria usado um “laranja” para abrir a empresa de investigação particular Conservadora Asa Imperial em nome de seu filho Israel Guerra. A “laranja” seria a professora desempregada Geralda Amorim de Oliveira, que confirmou ter fornecido documentos para a abertura da empresa. Geralda Amorim de Oliveira é irmã de uma amiga antiga de Erenice.
Em outro caso, segundo uma auditoria da CGU (Controladoria-Geral da União), José Euricélio de Carvalho seria responsável pelo desvio de R$ 5,8 milhões da editora da UnB (Universidade de Brasília). O desvio, parte de um esquema que teria deixado um prejuízo de R$ 10 milhões na editora, incluiria pagamentos para Carvalho e Israel Guerra.
Reações
A onda de denúncias contra Erenice e seus parentes começou em 11 de setembro de 2010. A revista “Veja” revelou primeiro que o filho da ministra, Israel Guerra, integrava um esquema de lobby Anac/Correios com o objetivo de intermediar contratos e benefícios com o governo federal. Com isso, outras revistas e TV, rádio, jornais e internet passaram a repercutir as acusações e foram trazendo fatos novos dessas e outras investigações. Praticamente por um mês inteiro essas denúncias foram o principal alvo do noticiário.
Após as denúncias da “Veja”, Erenice colocou seus sigilos fiscal, bancário e telefônico e os de sua família à disposição das autoridades competentes, além de negar tudo.
“Sinto-me atacada em minha honra pessoal e ultrajada pelas mentiras publicadas sem a menor base em provas ou em sustentação na verdade dos fatos, cabendo-me tomar medidas judiciais para a reparação necessária. E assim o farei. Não permitirei que a revista 'Veja', contumaz no enxovalho da honra alheia, o faça comigo sem que seja acionada tanto por danos morais quanto para que me garanta o direito de resposta”, disse em nota.
Ela ainda lamentou que o processo eleitoral, “no qual a citada revista está envolvida da forma mais virulenta e menos ética possível, propicie esse tipo de comportamento e a utilização de expediente como esse, em que se publica ataque à honra alheia travestido de material jornalístico sem que se veicule a resposta dos ofendidos”.
E também se defendeu na nota chamando o candidato da oposição à Presidência José Serra de “candidato aético e já derrotado, em tentativa desesperada da criação de um 'fato novo' que anime aqueles a quem o povo brasileiro tem rejeitado”. Ou seja, ela chegou a afirmar que as denúncias na mídia eram orquestração da oposição.
A então ministra também pediu à Comissão de Ética Pública da Presidência da República a imediata instauração de procedimento para apurar a sua conduta em relação às acusações.
Mas Erenice caiu rápido. No dia 16 de setembro, o jornal “Folha de S.Paulo” noticiou que uma empresa de Campina, EDRB do Brasil Ltda., confirmou outro lobby operaria dentro da Casa Civil da Presidência da República e acusou de novo o filho da ministra Erenice Guerra de cobrar dinheiro em 2009 para obter liberação de empréstimo no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). No mesmo dia da matéria Erenice foi exonerada pelo presidente Lula.
A mídia divulgou que o fato de haver muitos familiares dela envolvidos em caso de lobby passando pela Casa Civil, tornou sua situação “insustentável” perante o presidente. Pesou ainda contra Erenice a publicação da nota atacando o candidato tucano José Serra, sem consultar nem mesmo o presidente sobre o conteúdo do documento.
Em sua carta de demissão, Erenice Guerra afirmou que precisa de “paz e tempo” para se defender das acusações de lobby. Esses são alguns trechos:
“Senhor presidente, por ter formação cristã não desejo nem para o pior dos meus inimigos que ele venha a passar por uma campanha de desqualificação como a que se desencadeou contra mim e minha família. As paixões eleitorais não podem justificar esse vale-tudo.
Preciso agora de paz e tempo para defender a mim e minha família fazendo com que a verdade prevaleça, o que se torna incompatível com a carga de trabalho que tenho a honra de desempenhar na Casa Civil.”
Até o momento em que este trabalho foi escrito a última informação sobre o caso Erenice, dia 16 de novembro, é que a Casa Civil da Presidência da República prorrogou por mais 20 dias a sindicância instaurada em setembro para investigar suposta prática de influência no ministério. O prazo inicial da sindicância era de 30 dias. Acabou sendo prorrogada pelo mesmo período, impedindo que o resultado e o teor das investigações internas fosse conhecido antes da realização do segundo turno das eleições presidenciais. A Polícia Federal também prorrogou seu prazo de investigação.
A teoria social do escândalo
Para Thompson, no final do século 20 o escândalo assumiu uma importância na vida pública que ultrapassa a importância que ele possuiu para as gerações anteriores. Tanto que o principal marqueteiro da campanha de Dilma Rousseff, João Santana, admitiu em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo” do dia 6 de novembro que o caso Erenice provocou o 2º turno.
“O caso Erenice foi o mais decisivo porque atuou, negativamente, de forma dupla: reacendeu a lembrança do mensalão e implodiu, temporariamente, a moldura mais simbólica que estávamos construindo da competência de Dilma, no caso a Casa Civil”, disse João Santana.
Thompson ressalta que essa força do escândalo hoje está ligada a vários fatores, uma série de desenvolvimentos que possuem longa história e que tiveram profundo e duradouro impacto na vida social e política.
O principal apontado é o caráter de mudança dos meios de comunicação, que transformaram a natureza da visibilidade e alteraram as relações entre a vida pública e privada. “Nessa era moderna de visibilidade mediática, o escândalo é um risco que ameaça constantemente tragar os indivíduos cujas vidas se tornaram o foco da atenção pública”, diz o autor.
Há que se apontar também que hoje os escândalos também não são mais apenas tragédias pessoais – eles são também “lutas sociais que são travadas no campo simbólico”, no vaivém de afirmações e contra-afirmações, de revelações, alegações e negativas. E o escândalo é um fenômeno que acontece predominantemente no espaço público.
Nessa teoria social do escândalo que cria, também destaca que as transformações sociais do período pós 2a Guerra Mundial foram gradualmente enfraquecendo a política ideológica dos partidos tradicionais com base nas classes.
Para Thompson isso criou as condições para uma “política de confiança”, isto é, muitas pessoas olham cada vez mais para a credibilidade e a confiança dos líderes políticos ou aspirantes a líderes, para seu caráter (ou falta dele), como um meio de avaliar sua adequação, ou não, ao exercício de um cargo. A ideologia política e programas partidários muitas vezes são deixados de lado nesse contexto. Nisso, o escândalo político assume um novo papel poderoso e auto-reforçador, como teste de credibilidade.
Poderes ameaçados
O que está em jogo não é apenas o orgulho do acusado em um escândalo, mas também seu poder, sua capacidade de fazer uso da reputação ou bom nome a fim de exigir respeito de outros e alcançar interesses e objetivos. O caso Erenice conseguiu diminuir o poder da ministra Erenice Guerra e da candidata Dilma Rousseff. Como já mostrado, com isso a primeira perdeu o emprego e a segunda perdeu eleitorado e foi para o segundo turno das eleições, que poucas semanas antes do escândalo liderava com folga.
O autor define escândalo como “ações ou acontecimentos que implicam certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos de outros e que são suficientemente sérios para provocar uma resposta pública”. Normalmente são três os tipos principais de escândalos em nossa sociedade, que podem se misturar: má conduta nas relações sexuais; violação de regras das transações financeiras; e a corrupção no exercício do poder político.
E são dois os modelos de escândalos definidos por Thompson. No mais simples, uma ação de transgressão oculta é revelada publicamente, ou alega-se publicamente que ocorreu, e a revelação pública e/ou as alegações provocam manifestações públicas de desaprovação. No mais complexo, como o do caso Erenice, as revelações e alegações defrontam-se com negações e contra-alegações por parte dos indivíduos envolvidos, que por sua vez levam a investigações e revelações posteriores, dando origem a uma série de transgressões de segunda ordem. Muitas vezes as transgressões de segunda ordem podem assumir importância bem maior que a ofensa original.
Após as denúncias iniciais contra Erenice, ela se defendeu com várias negações e até colocou seus sigilos à disposição para investigação. Também alegou que as denúncias eram motivadas pela eleição e atacou o candidato da oposição. Novas investigações da mídia levaram a mais denúncias, algumas que reforçavam as acusações iniciais e outras de novos casos.
A situação de Erenice ficou insustentável porque praticamente todos os veículos de mídia traziam acusações contra ela e, talvez o pior, ela estava envolvida em denúncias em conjunto com parentes. Na sociedade brasileira o político ou gestor público que usa seu poder para beneficiar sua família é muito mal visto. As denúncias de tráfico de influência e propina ficaram muito mais fortes moralmente porque envolviam parentes.
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