segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Carne vai ficar mais cara

Comer carne vermelha no estado de São Paulo já está caro e o preço vai subir ainda mais. O Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), da Esalq/USP, divulgou que a arroba do boi (14,69 kg) bateu os R$ 100 no mercado paulista, uma marca histórica. O reflexo já está nos açougues.

Ontem a cotação do boi fechou a R$ 101,35, o segundo maior valor desde o início da série histórica do Cepea em julho de 1997.   Até o momento, a maior média mensal do indicador é de R$ 102,99, verificada em novembro de 1999 com valores já deflacionados.

Passado /O pesquisador responsável do Cepea, Sergio De Zen, explica que o mercado de carne em São Paulo está colhendo frutos de situações e decisões do passado.
Há cinco anos, o preço da arroba do boi estava baixo e isso desestimulou a produção de boi. Com isso, muitas matrizes (vacas) foram abatidas.

Por consequência, este ano há uma oferta de boi menor nos frigoríficos para abate. Se juntaram a isso a estiagem severa dos últimos meses, o mercado interno aquecido e o crescimento das exportações. Segundo dados da Secex (Secretaria de Comércio Exterior), no acumulado deste ano, o volume de carne in natura embarcado foi 10% superior ao do mesmo período do ano passado.

O rebanho nacional, que chegou a cerca de 206 milhões de cabeças há cinco anos, fica hoje em torno de 180 milhões de cabeças, segundo a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).

Futuro /O  presidente do Fórum Nacional Permanente de Pecuária de Corte da CNA , Antenor Nogueira, afirma que essa situação de alta do preço da carne é nacional. “Sem conseguir renda suficiente para se manter na atividade, os pecuaristas não tiveram opção e foram obrigados a abater boa parte do rebanho, a maioria de fêmeas”, diz.

A disponibilidade de animais para abate é tradicionalmente menor durante o período de inverno. Mas, segundo a CNA, não há perspectiva de redução de preços, mesmo com o fim da entressafra.

Os confinamentos (criação de bovinos em piquetes ou currais) são finalizados até meados de novembro, após as primeiras chuvas. Neste ano, no entanto, as queimadas destruíram as pastagem e a recuperação deve levar mais tempo, o que resultará em atraso na conclusão do processo de engorda. “Os preços do boi gordo não devem cair, mesmo com a chegada das chuvas”, completa.

Segundo pesquisa da CNA, a alta dos preços dos cortes no atacado superou a valorização da cotação do boi gordo.  No acumulado do ano até agosto, os preços do dianteiro (parte menos nobre do boi) foram os que mais subiram no atacado: 38,84%. O preço da ponta de agulha, por exemplo, subiu 31,74% no período analisado.

MPEs paulistas terão R$ 236 mi para inovação


As MPEs (micro e pequenas empresas) paulistas terão mais recursos a partir do ano que vem para a inovação e tecnologia. Ontem, em São Paulo, o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) lançou uma ampliação do programa  Sebraetec, de apoio a inovação.


Para o período de 2011 a 2013, serão destinados R$ 787 milhões para o Brasil todo. Segundo o gerente da unidade de acesso a inovação e tecnologia do Sebrae, Edson Sermann, o estado de São Paulo receberá nada menos que cerca de 30% do valor (R$ 236,1 milhões).


Neste ano, o Sebraetec prevê investir R$ 28 milhões  no Brasil. Ano que vem, na nova fase, o primeiro ano terá  R$ 85 milhões para subvenções.  


O dinheiro será aplicado  em projetos de MPEs que venham ampliar seus negócios, promovendo a competitividade e o desenvolvimento sustentável desses empreendimentos.


A liberação de recursos começará a partir de janeiro, por meio de duas formas: para projetos mais simples (até R$ 30 mil), o empresário precisará procurar o Sebrae e mostrar  suas necessidades; e para intenções mais elaboradas (até R$ 600 mil), será necessário apresentar projetos em editais que serão abertos pelo Sebrae nos estados. O Sebrae afirma que vai subsidiar até 50% dos projetos.


Edson Sermann defende a inovação como uma prioridade nas empresas, tenham elas qualquer porte. “Precisamos desmitificar a inovação no Brasil. Uma empresa pode inovar em qualquer área, como tecnologia, marketing, processos, sempre com grandes retornos”, disse.


As MPEs também se apresentam no Brasil como altamente estratégicas. Segundo o Ministério do Trabalho, 56% da mão de obra com carteira assinada do país está nas MPEs. Do total de 28 milhões de empregos urbanos (42% da população economicamente ativa) gerados pela iniciativa privada, 16 milhões são gerados por micro e pequenas empresas.


Num cenário de alta competição com produtos importados, Edson defende que a inovação é também um meio de sobrevivência. “Nós entendemos as MPEs precisam de inovação para ficarem no mercado. Os pequenos negócios nacionais estão sendo afetados com a vinda de vários produtos importados”, aponta.


Um grupo de empresários brasileiros criou ano passado o MEI (Movimento Empresarial pela Inovação) para pressionar o próximo governo a dar mais espaço para a inovação. A queixa é que a Lei de Inovação, sancionada em 2004, e Lei do Bem, de 2007, não foram suficientes para estabelecer um marco regulatório para  incentivar a inovação. 


 Após as eleições de outubro, o MEI vai apresentar ao próximo presidente eleito um diagnóstico da inovação no Brasil e cobrar providências.
Há reclamações como a falta de políticas de inovação setoriais e poucos recursos para plataformas de inovação para processos de longo prazo.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Todos os portos para Elizabeth Bishop

Certamente, uma das coisas mais marcantes na peça "Um porto para Elizabeth Bishop" é a sua reciprocidade: a personagem amou intensamente o Brasil da mesma forma como o público do espetáculo a ama. O grande achado da autora deste monólogo, a escritora e jornalista Marta Góes, foi conseguir mostrar o fascínio da poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979) pelo Brasil, e também reproduzir a simpatia que os brasileiros que viveram com ela sentiram. A atriz Regina Braga representa uma mulher sensível e carente que é adotada pela platéia.

       E esse amor não é piegas, pelo contrário, sabe ser crítico e bem-humorado. Nós rimos de Elizabeth contando nossas misérias: o atraso do país (Bishop não acredita como tudo é tão desorganizado), e a elite permanente ("a elite no Brasil deve ser muito pequena, pois são todos parentes, os políticos, os artistas"). E também ficamos emocionados com a descrição de nossos pequenos detalhes: mães embalando com carinho os filhos em grossas mantas mesmo no verão, e a nossa mania de tentar ajudar aqueles que gostamos ("todo mundo me receitava um remédio, o Brasil é o melhor lugar do mundo para ficar doente").




       Regina Braga, 30 anos de carreira e vários prêmios (duas vezes o Molière, 1983 com "Chiquinha Gonzaga", e 1991 por "Uma relação tão delicada"), procurava uma peça que falasse sobre o Brasil e pediu ajuda para Marta Góes. Ela tinha acabado de ler "Poemas do Brasil" de Elizabeth Bishop e se encantava com a poeta que havia morado em Petrópolis (RJ), cidade que ela passou sua infância. As duas, amigas que já trabalharam juntas (Regina dirigiu "Prepare seus pés para o verão", de Marta), decidiram então montar uma peça a partir das cartas e poemas de Bishop que falavam do Brasil. Convidaram para dirigir José Possi Neto ("Emoções Baratas", "Tratar com Murdock").

       A peça estreou no Festival de Teatro de Curitiba do ano passado, e Regina Braga já ganhou o prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) por sua atuação, além de Marta Góes ter sido indicada ao Prêmio Shell deste ano.

       Todo esse reconhecimento tem motivos de sobra. Regina está radiosa no espetáculo e a delicadeza dos temas impressiona: a relação amorosa que Bishop teve com a arquiteta carioca Lota Macedo Soares é tratada de uma forma muito natural, relatando o convívio das duas, seus sonhos, brigas, preconceitos sofridos; e os caminhos tortos que um artista percorre, vivendo com a solidão e a eterna dúvida da imperfeição, no caso da poeta marcados pelo alcoolismo e a depressão, magnificamente encenados por Regina. Destaque também para o deslumbrante cenário de Jean Pierre Tortill.

       Elizabeth Bishop fazia uma viagem de circunavegação pela América em 1951 e desembarcou no porto de Santos para uma escala de poucos dias no Brasil. Visitando Petrópolis, ela comeu o "fruto proibido": provou um caju e teve uma grave intoxicação alérgica. Só que ao invés de ser expulsa do "paraíso", ela foi acolhida nele: se apaixonou por Lota (que cuidou da poeta enquanto ela estava doente) e pelo país, acabou ficando por longos 15 anos. Nesse período sua poesia floresceu, ela ganhou o Prêmio Pulitzer de poesia em 1956.
  

       Uma das mais belas poesias de Bishop, "The Shampoo", fala da paisagem brasileira e dos cabelos de Lota:

"O banho de xampu"

"Os líquens - silenciosas explosões nas pedras - crescem e engordam, concêntricas, cinzentas concussões. Têm um encontro marcado com os halos ao redor da lua, embora até o momento nada tenha mudado.
E, como o céu há de nos dar guarida, enquanto isso não se der, você há de convir, amiga, que se precipitou; e eis no que dá. Porque o Tempo é, mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas cadentes, arredias. Para onde irão elas tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia amassada e brilhante como a lua."

(Tradução de Paulo Henriques Britto do poema "The Shampoo", publicado em "Poemas do Brasil", Cia. das Letras, 1999)


    A atriz Regina Braga concedeu uma entrevista coletiva pouco antes do espetáculo. Leia a seguir alguns trechos:


Pergunta - Quais a sensação de estar encenando pela primeira vez um monólogo?
Regina Braga - Pânico! (risos). Eu sempre fui uma atriz que se apoiou nos companheiros de peça nos momentos de dificuldade. Acho que o que me salvou foi o texto da Marta, é um texto pelo qual as pessoas se interessam, todo mundo fica curioso com a história de uma gringa observando e sentindo o Brasil. E o Possi foi um diretor muito atencioso nos ensaios, alguém que me deu muito carinho.

Pergunta - Comente a direção de José Possi Neto.
Braga - Ele é um diretor muito generoso, um dos poucos que não me machucaram. Porque o início de uma encenação é sempre muito difícil, você se expõe ao ridículo quando começa a ensaiar. O Possi também soube ver o humor da peça, em cenas que a princípio eu não tinha notado.

Bazarcultura - Muitos críticos afirmam que as melhores poesias de Elizabeth Bishop foram escritas no período em que ela viveu no Brasil. Você acha que isso deveu a?
Braga - No início do espetáculo, numa cena que adoro fazer, ela diz que no Brasil "há um excesso de cascatas". Então foi isso, ela se deslumbrou pelo Brasil, primeiro pela paisagem, as cachoeiras de Petrópolis, e depois pelos brasileiros, que deram afeto e cuidados para ela. Bishop era órfã dos pais, sofreu muito, quando ela se viu sendo tocada, cuidada pelos brasileiros, se sentiu muito bem. Como ela diz, sofreu um "choque amoroso". Na peça é nítida a melhora da sua vida quando ela passa a morar no Brasil.

Bazarcultura - Como é interpretar uma personagem tão sensível, e sendo esta uma estrangeira observando o Brasil?
Braga - É ótimo. Eu me sinto muito a vontade para criticar o país, pois interpreto uma estrangeira (risos). Eu adoro fazer.

Bazarcultura - A maior parte do texto da peça é baseado nas cartas que Bishop escreveu para seus amigos. Você já tinha trabalhado com um texto feito de cartas, e como foi o trabalho junto com a Marta Góes na sua elaboração?
Braga - Na verdade, a Marta transformou as cartas em textos dramáticos, são poucos os momentos em que eu declamo as cartas, como quando a Elizabeth escreve uma carta para sua médica, a doutora Anne. A Marta foi escrevendo o texto e me mostrando, outras versões foram surgindo de observações em conjunto nossas. Sabe, o escritor às vezes não percebe a redundância de uma cena, ou como ela poderia ser transformada num gesto, coisa que o ator vê logo.

Pergunta - Como você vê o teatro brasileiro hoje?
Braga - Desde quando comecei vem piorando. O público vem diminuindo. "Uma relação tão delicada", por exemplo, ficou em cartaz por quatro anos. Antigamente, era normal você fazer um espetáculo durante dois anos em São Paulo, um no Rio, e mais um excursionando pelo Interior e outras capitais. O ator não consegue mais viver da bilheteria, precisa de patrocinadores, o que muitas vezes tira a sua liberdade.





(Matéria realizada para o site Bazarcultura)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Odeio patrão

Ele escreve todo dia uma média de 14 horas. Senta em frente o computador de manhã e só pára de noite. Diz que tira uma dor quando escreve, sente prazer nisso, uma verdadeira terapia. Quando a inspiração não vem, ele se "aquece" ouvindo Lou Reed, lendo seus autores prediletos (Camus, Graciliano, Dostoievski, Henri Miller), se masturbando, enfim, procura a emoção para criar. Fernando Bonassi (1962), depois de muitos livros, roteiros, peças, hoje é um escritor brasileiro que consegue viver de sua arte.

        Essa conquista da auto-suficiência ele faz questão de enaltecer, não só por vaidade, mas também porque se sente muito feliz com isso. Bonassi vem de uma família paulistana de classe média-baixa da Mooca, seus pais eram metalúrgicos. Conseguiu passar na USP, fez Cinema na ECA. Seu primeiro curta, "Os circuitos do olhar", é de 1984. Mas ele cismou em tentar mais, queria escrever. Pegou esse gosto lá pelos 14 anos, quando escrevia bilhetes para uma garota que não olhava na sua cara. Não deu certo, os bilhetes não foram entregues, nem nunca se olharam, mas Bonassi seguiu escrevendo. Como muitos escritores, começou com um livro de poesias, "Fibra Ótica" (Massao Ohno Editor, 1987). O segundo, agora de contos, levou muitos não, dez para ser exato, algumas editoras até disseram que ele deveria procurar outra coisa para fazer. Finalmente, em 1989, saiu "O Amor em Chamas" (Estação Liberdade).



        Depois, veio o primeiro livro do autor de mais repercussão, o romance "Um céu de estrelas" (Siciliano, 1991), que Tata Amaral adaptou para o cinema em 1995. Ganhou prêmios de melhor filme nos festivais de Biarritiz (França), Brasília e Trieste. A história é uma tragédia da Mooca: o metalúrgico Vítor não aceita o fim do noivado com a cabeleireira Dalva, ambos são cheios de sonhos, mas terminam num violento desespero social e emocional.

        Dezesseis livros vieram em seguida, seis destes na literatura infanto-juvenil, que o autor confirma serem seus mais vendidos, como "A incrível história de Naldinho - um bandido ou um anjinho?" (Cosac & Naify, 2001), sobre crianças que acabam no mundo do crime. Por abordar temas assim, sua literatura infantil é dita "violenta", porém Bonassi crê que este é um dos enfoques corretos para as crianças das grandes cidades. "Acho a literatura infantil de hoje muito babaca, sem nada da realidade. Não dá para trabalhar só contos de fadas com crianças que vivem num mundo tão desigual", comenta.

        Por outro livro infantil, "Declaração Universal do Moleque Invocado", (Cosac & Naify, 2001), uma subversão bem-humorada da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o autor foi indicado como finalista do Prêmio Jabuti 2002. A cidade de São Paulo, suas ruas, casas, cortiços e pessoas, foram inspiração para outro livro do autor que concorreu ao mesmo prêmio no ano seguinte, agora na categoria Contos e Crônicas por "São Paulo/Brasil" (Dimensão, 2002).



        O último livro de Bonassi é "Prova Contrária" (Objetiva, 2003), uma criação que surgiu de uma lei sancionada em 1995 pelo então presidente FHC: o Estado passou a reconhecer como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação, em atividades políticas, no período de 1961 a 1979, bem como assumiu a responsabilidade pelas arbitrariedades cometidas por seus agentes e estabeleceu indenização financeira aos familiares das vítimas. No livro, uma mulher consegue esse dinheiro do governo, já que seu marido sumiu durante a ditadura. Ela compra um apartamento e, justamente no dia da mudança, o esposo reaparece depois de tanto tempo. Ele não dá só uma explicação para isto, mas logo três: ou ele é um fantasma, ou é um traidor da causa revolucionária que resolveu sumir todo esse período, ou é um homem que havia se cansado da relação com a esposa e abandonou-a.


Berlim

        Um fato que marcou a obra de Bonassi foi uma bolsa de estudos alemã ganha em 1998. O Kunstlerprogramm do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst) paga aos escritores 2.500 dólares para escrever um livro e banca sua moradia por um ano. Ele adorou viver numa "cidade tão louca como Berlim", e produziu "O Livro da Vida", projeto de contos curtos com mil histórias do mesmo tamanho. Algumas delas já foram publicadas no Brasil: "100 Coisas" (Ed. Angra, 2000) e em "Passaporte" (Cosac & Naify, 2001).

        Mas o mais importante dessa temporada alemã é que depois Bonassi decidiu de vez ser um escritor. Ele conta que resolveu abrir mão de alguns confortos materiais e salário burguês, hoje prefere viver modestamente fazendo aquilo que ama, escrever. Tanto que vai abandonar sua coluna "Macho" na Folha de S. Paulo por não se sentir mais feliz com ela. A propósito, declara que o jornalismo e a propaganda são a morte do escritor. "Para falar a verdade, eu odeio patrão", completa.


        Leia um dos contos de "100 Coisas":


"Antes de casar, Zeca escolheu muita mulher até escolher Silvia, que engordou. Já Hirani escolheu muito marido até escolher Dario, que bate nela. César escolheu muito amigo até escolher Wilsinho, que o levou à cadeia nuns lances aí. Cristina escolheu várias amigas até escolher Hirani, que roubou seu marido. O marido de Hirani escolheu muitas amantes até se apaixonar por Silvia. Cristina escolheu muitos amores até escolher Wilsinho, que está preso. César escolheu muitos companheiros de cela, até encontrar Genésio, que o fez descobrir um outro lado de si. José Carlos escolheu ser corno."

Faça sua escolha - conto retirado de "100 coisas", de Fernando Bonassi (Angra, 2000)


Aqui e Agora

        No Salão de Idéias da II Bienal do Livro de Bauru, o tema proposto para Bonassi foi "Literatura Aqui e Agora", claro, um trocadilho com sua obra tida, às vezes, violenta e o extinto programa mundo cão da TV. Ele não nega totalmente esse título fácil, pois parte de sua obra aborda temas violentos sim, como a participação no roteiro de "Estação Carandiru", de Hector Babenco. Por sinal, um trabalho que Bonassi tem duas visões. A primeira, uma grande experiência pessoal trabalhando no Carandiru durante a roteirização com o próprio Babenco e Victor Navas (por um ano e meio Bonassi ajudou os detentos a escreverem cartas). A segunda, o desagrado com o resultado final, "um filme muito acadêmico, como novela das oito", segundo sua opinião.

        Mesmo assim ele exalta o sucesso de obras como "Estação Carandiru", "Os Matadores" (co-roteirização dele também) e "Cidade de Deus". "É uma abertura para os problemas sociais. As pessoas escolheram ver as mazelas nacionais, esse novo governo representa isso", analisa.

        Em relação a outros temas, o autor citou seu romance "O amor é uma dor feliz" (Moderna, 1997), uma obra quase autobiográfica narrada por um garoto que cresce num bairro operário decadente, mas que consegue passar no vestibular para cinema e vai estudar na melhor universidade pública do país. "Nesse livro, tudo o que escrevi é verdade, principalmente o que eu inventei", brinca.

        Em relação à "Geração 90", um nome inventado pela imprensa para designar os novos escritores que entraram em evidência na última década do século passado, como Marçal Aquino, José Roberto Torero, Marcelo Mirisola, Bonassi opina que é mais reducionista do que fiel à realidade. "Eu, por exemplo, formei minha cabeça durante a década de 70 e comecei a publicar já nos anos 80. É mais um recorte da mídia. Alguns jornalistas e/ou críticos dizem que uma característica que une todos esses escritores é o extremo realismo nos textos, o que não é verdade. 'O fluxo silencioso das máquinas' (Ateliê Editorial, 2002), de Bruno Zeni, para mim o melhor autor da atualidade, não tem nada de realismo. São descrições de rostos dos usuários do metrô", comenta.  

        E a literatura de Bonassi também não pode ser facilmente inscrita em um estilo. A maneira como ele escreve, muitas vezes sem dar nome aos personagens, pouca descrição, frases curtas, que lembram uma poesia crua, lembra muitas vezes o cinema, ou até letras de músicas. "Gosto dos personagens em ação com uma descrição bem enxuta. Não gosto de narradores oniscientes, não acredito nisso. O leitor é que deve fazer suas escolhas e criar suas opiniões", afirma.

        Os próximos planos de Bonassi são um livro infantil, "Declaração Universal da Menina Esquisita", e a participação num projeto editorial que pretende contar várias histórias sobre lugares que estão sumindo em São Paulo, como os parques de diversões, locais que o escritor vai transformar em livro.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O fim está no começo e no entanto continua-se

        A apresentação da peça "Fim do Jogo" nos dias 26, 27 e 28 de abril no Teatro Municipal de Bauru, teve significados e importâncias muito grandes: foi a primeira apresentação profissional de Edson Celulari na sua terra natal; mostrou mais uma parceria bem-sucedida entre ele e o ótimo ator Cacá Carvalho; o público teve o privilégio de conhecer e se emocionar com um dos melhores textos do dramaturgo irlandês Samuel Beckett; as apresentações marcaram também o final da temporada da peça e o aniversário de dois anos do Teatro Municipal "Celina Lourdes Alves Neves".

        Celulari, 43, bauruense, ator de televisão, cinema e teatro, deixou a cidade para seguir sua carreira há 24 anos atrás. Nesse meio tempo, só vinha à Bauru para visitar sua mãe, irmão e tios que permanecem morando na cidade. São 23 anos atuando, trabalhando em peças como "Calígula" (Albert Camus), "Ela odeia mel" (Hamilton Vaz Pereira), "Capital estrangeiro" (Silvio Abreu) e "Fedra" (Racine), os filmes "Asa Branca - um sonho brasileiro" (1980), "Inocência" (1983) e "Ópera do Malandro" (1985); e várias telenovelas: "Guerra dos Sexos", "Cambalacho", "Que Rei Sou Eu?", "Fera Ferida" e "Vila Madalena".

        O parceiro de Celulari em o "Fim do Jogo", Carlos Augusto Carvalho, o Cacá, 48, só ficou mais conhecido do grande público em 1998 quando interpretou o personagem Jamanta na telenovela "Torre de Babel", apesar de ser há muito tempo um dos grandes atores do teatro nacional. São 31 anos de palco deste paraense de Belém do Pará, marcados pela excelente atuação na primorosa montagem de "Macunaíma" feita por Antunes Filho em 1978, sucesso no Brasil e em mais de 20 países. Em meados dos anos 80, Carvalho iniciava sua fase de trabalhos na Itália, participando até hoje do Centro de Experimentação e Pesquisa Teatral de Pontedera, onde realizou com o diretor Roberto Bacci elogiadas peças como "O Céu por Terra" e "O Homem com a Flor na Boca".

        O primeiro encontro no palco entre Celulari e Carvalho aconteceu em 1985 quando atuaram em "Hamlet", de Shakespeare, com direção de Marcio Aurélio. Depois, voltariam a trabalhar juntos só em 1997 em "Don Juan", de Molière, direção de Moacir Chaves. Para "Fim do Jogo" os atores convidaram o diretor Francisco Medeiros, que em 2000 havia dirigido o monólogo "A Última Gravação de Krapp", também de Beckett, interpretado por Antônio Petrin. A tradução do texto, escrito originalmente em francês, "Fin de partie", foi feita pelo escritor Millôr Fernandes. Completam o elenco os atores Malu Pessin e Lafayette Galvão.

O escritor dos duplos
        Em 13 de abril de 1906, uma Sexta-feira Santa, nascia Samuel Barclay Beckett, em Foxrock, perto de Dublin, a capital da Irlanda. Era de uma família burguesa e protestante.





        Em 1928, Beckett muda-se para Paris afim de estudar e lecionar literatura. Forma-se em francês e italiano. Conhece o genial James Joyce ("Ulisses", "Finnegans Wake"), do qual se torna amigo, assistente e secretário, inclusive no período de cegueira do escritor. A relação entre os dois, filhos da Irlanda que optaram por morar na França, no início era como pai-filho e mestre-aluno, mas depois se transformaria numa amizade em que cada um se completava, como escreveu um dos mais importantes biógrafos de Joyce, Richard Ellmann:


        "Beckett era dado a uns silêncios, e também Joyce; os dois tinham conversas que consistiam muitas vezes de silêncios dirigidos um ao outro, ambos impregnados de tristeza, Beckett sobretudo pelo mundo, Joyce sobretudo por si mesmo. Joyce sentava-se em sua posição habitual, pernas cruzadas, o dedão da perna de cima sob o peito do pé da outra; Beckett, também alto e magro, caía no mesmo gesto. Joyce de repente fazia uma pergunta, tipo 'Como pôde o idealista Hume escrever história?' Beckett respondia: 'Uma história de representações.'"


        Outra influência foi o grande escritor francês Marcel Proust ("Em busca do tempo perdido"), ao qual Beckett dedicou uma monografia em 1929. Ainda nesse ano, vence seu primeiro prêmio literário com o poema "Whoroscope". Durante a II Guerra Mundial, ingressa na Resistência Francesa, trabalhando como intérprete num hospital militar. Foi quase pego pela Gestapo nazista.

        Após o final da guerra, Beckett adota o francês como seu principal idioma de criação literária, estabelecendo um estilo seco e direto, o mais simples possível. Seus temas, tragicomédias, instauram o riso a partir de situações engraçadas causadas por privações e sofrimentos. Como ele próprio definiu, "meu assunto é o fracasso".

        Seus personagens são vagabundos, andarilhos, moribundos, insistindo nos mesmos erros e palavras, como palhaços que reencenam todo o dia a mesma farsa. Só que as repetições de Beckett são analogias da vida: os processos históricos que se assemelham tanto nas suas mentiras, promessas e dúvidas; e as relações humanas, todas elas parecidas em seus momentos de dor, medo e ingenuidade.

        Seus principais romances, "Murphy", "Watt", e a trilogia "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável", apresentam a comédia da impotência e ignorância humanas. No teatro a perspectiva é a mesma, porém apresentando mudanças de estilo: através de uma linguagem o mais resumida possível, ele cria situações absurdas e põe em cheque o sentido das palavras e das ações humanas.

        Em 1953 surge "Esperando Godot", com os dois vagabundos Vladimir e Estragon. No ano de 1956, "Fim do Jogo", com o pai/patrão/mestre Hamm e o filho/empregado/aprendiz Clov. Seguem-se "A Última Gravação de Krapp", 1958, com o jovem e velho Krapp, e "Dias Felizes", de 1961, com a personagem Winnie sendo enterrada à medida que relembra seus momentos com o marido.

        São todas peças lúdicas no sentido de sempre apresentarem pares e repetição de frases e gestos. É o viver todos os dias a mesma rotina e tendo a consciência disso, mas sem nenhuma força ou coragem para mudar. Beckett ironiza isso - a mãe de Hamm, Nell, fala em o "Fim do Jogo" que "Nada é mais é engraçado que a infelicidade".
Nas falas de Hamm e Clov, não há um sentido, ou melhor, o autor põe em dúvida a existência numa proporção tamanha que faz sobrar apenas o ridículo:


       Já me fez essa pergunta milhões de vezes./ Gosto de velhas perguntas. Ah, velhas perguntas, velhas respostas, não há nada como elas".

(trecho retirado de "Fim de Partida", tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade, Cosac & Naify, 2002)


        Seus textos trazem cenários enclausuradores, com pouca luz ou cinzenta, sem móveis. Não coincidentemente, Beckett era afeito ao alcoolismo e vítima de fortes depressões. Sua morte foi às vésperas do Natal de 1989, em 22 de dezembro. Antes, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1969.

"Fim do jogo"
        Num lugar esquecido, vivem um cego paralítico numa cadeira de rodas (Hamm), seu empregado manco, que enxerga mal e não consegue mais se sentar (Clov, ou Clóvis na tradução de Millôr Fernandes), e os pais do cego (Nagg e Nell), com as pernas amputadas e morando em latas de lixo.

        Nesse lugar mórbido, todos justamente esperam a morte, nutrindo entre si uma dependência psicológica - ambos se ofendem, mas precisam estar juntos. Na montagem que apresentada em Bauru, Edson Celulari e Cacá Carvalho revezam as interpretações dos personagens Hamm e Clóvis. O casal de velhos é feito pelos atores Lafaytte Galvão e Malu Pessin.

        A proposta de trocar os papéis principais nas apresentações é bem interessante, pois a própria peça estabelece esse jogo - Hamm não é sempre o explorador que humilha seu empregado Clóvis, este também martiriza seu patrão.






        Viu-se uma grande adaptação do texto de Beckett. Merecem elogios Galvão e Pessin por suas comoventes e cruéis representações dos velhos. Celulari e Carvalho optaram por realizar seus papéis de forma "clownesca", exagerando propositadamente nos trejeitos e falas. Essa opção se mostra um pouco perigosa, pois a peça apresenta variantes e sutilezas trágicas. Talvez essa forma de atuar fosse mais adequada para "Esperando Godot", por exemplo, em que os dois personagens principais agem como verdadeiros palhaços. Todavia, só em alguns momentos a representação de Hamm e Clóvis foi prejudicada, ocasiões em que a voz esganiçada ou gesto espalhafatoso dos atores se sobressaíram aos absurdos retratados. Beckett é muito complexo por isso, sua montagem exige um grande equilíbrio entre o humor no texto e o apresentado pela atuação do ator.

        Muitas são as analogias de "Fim do Jogo": relação mestre e empregado, pais e filhos, o flagelo da guerra etc. Beckett dizia que pensou em movimentos do jogo de xadrez - Hamm, representando o rei no centro do palco, se movimenta movido pelo peão Clóvis, ou o rei ordenando o movimento do peão. Shakespeare também pode ser visto na peça: sentado em sua cadeira, cego e parado, Hamm remete ao Rei Lear ou a Hamlet em seus tronos, todos reis decadentes.

        Uma alegoria final, essa construída, foi a estréia do espetáculo na cidade natal de Cacá Carvalho, Belém do Pará, e seu encerramento na cidade onde Celulari nasceu, Bauru. Como diz Hamm na peça, "O fim está no começo e no entanto continua-se". O fim e o início são os mesmos na comédia da vida.


        O Bazarcultura participou da entrevista coletiva com os atores Edson Celulari e Cacá Carvalho, que você confere abaixo:

Pergunta - Como você está vendo Bauru hoje, depois de todo esse tempo fora?
Edson Celulari - Eu fico muito orgulhoso quando ouço dos meus amigos que já passaram por aqui, que a cidade tem um lindo teatro, uma platéia inteligente, interessada. Saber também que hoje existem 15 grupos de teatro atuantes. Então você nota a cidade modificada. Não sei se isto já está refletindo, mas acho que o hábito de ir no teatro cria uma onda de pensar, entender melhor as coisas. Acho que sempre deve haver uma preocupação para melhorar isso, porque o público que vai ao teatro pensa e sente tudo melhor. Uma cidade que cresce tem que se preocupar com a cultura, não existe uma cidade economicamente forte e culturalmente fraca. É importante também a expressão local, peças e autores da cidade falando de questões daqui.

Pergunta - Falem um pouco desse projeto "Fim do Jogo".
Celulari - É um projeto também afetivo nosso, estreamos em Belém e estamos finalizando aqui em Bauru. Tivemos o orgulho de começar na cidade do Cacá e terminar em Bauru, uma local bem mais jovem e iniciando sua vida com esse novo espaço, o Teatro e o Centro Cultural.
Cacá Carvalho - Mas é muito doida essa coisa de um espetáculo que cumpre o seu ciclo de apresentação, porque o teatro tem tantos estágios. O estágio em que você fica elaborando o projeto, você já está fazendo o espetáculo, é uma fase dele. E depois surgem diversas outras fases, e no nosso caso milhões delas, porque além de apresentar, nos desdobramos diariamente, então ele se multiplica. Ao acabar a fase de exposição, o espetáculo continua, ele vai passar a acontecer internamente, na medida em que a saudade se manifesta, e em que você vai refletir sobre ele, principalmente quando é um texto que tem um valor de analogia e metáfora tão grandes. Então, na realidade ele cumpre uma fase de exposição pública e aí passa a agir dentro de cada um de nós, como agiu em cada um espectador que passou por ele em Belém do Pará.
        Por isso que o teatro não morre. Pode ser que o nosso trabalho tenha provocado em alguém o interesse em comprar o livro do Beckett, então nosso trabalho não morreu, continua lá na estante da pessoa, ou talvez alguém conte a história para outra pessoa, continua frutificando.
       Sobre o espetáculo estar encerrando a apresentação aqui, quando estreou em Belém decidimos terminar aqui. Tem um sentido muito bom estar aqui, para mim é muito emocionante estar no lugar onde o Edson Celulari nasceu e começou fazer sua história de teatro, isso é muito bonito. Quando você volta à casa, por mais que você diga que não a reconhece direito, tem uma coisa que está debaixo de tanta camada de progresso, de tempo que passa, que você reconhece no cheiro, no calor dela, na cor da terra dela. Têm muitas cidades invisíveis atrás dessa cidade visível, que ele vê e eu não vejo, então é bonito ver através do modo que ele vê a cidade dele.

Pergunta - Qual é o jogo que termina na peça?
Carvalho - Por analogia se pode achar que é o fim do jogo da vida, fim do jogo das relações dentro da peça. Mas por uma analogia maior, partindo de que um dos personagens diz que não enxerga (Hamm), outro dizer que não pode se sentar (Clóvis), e dois que dizem que perderam as pernas e por isso estão em latas de lixo (Nagg e Nell), você passa a supor que a pessoa que detém o poder na encenação, que está no centro, e não enxerga e não caminha, representa que o poder está no centro, cego e paralítico. Este personagem é assessorado pelo que não senta, enxerga e anda mal, ou seja, está no caminho de também ficar cego e paralítico. Os pais do poder já estão no lixo, como o fim de todos nós. A partir desta situação, você pode fazer uma reflexão maior sobre a condição humana, isto é, uma "situação dramática" que tem uma leitura pesada. Você pode lê-la assim, porém o Beckett coloca uma veste "clownesca", e nós assumimos isso. É como se essa comédia "clownesca" fosse uma cortina que te possibilita ver a realidade de um modo não simplesmente nu e cru, porque isso seria somente sublinhar o que já está vermelho em letras garrafais. Assim, o fim do jogo na realidade é mais uma charada que você decifra como ela te interessa: você dizer que não entendeu, dizer que é uma reflexão sobre o poder, ou dizer simplesmente que é uma situação dramática cômica que no final fica um pouquinho pesada.
       Com relação ao projeto, ele nasceu com a estréia em Belém do Pará e o fim do jogo da vida dele é em Bauru, são duas pontas como se você caminhasse de um lugar para outro. Durante o nosso período de trabalho, o diretor sempre falava no ensaios, "é o fim, mas o fim é cheio de vida", e nós chegamos ao fim da vida desse espetáculo cheios de vida. Não é que ele morre, ele concluí uma fase que é a de apresentação, mas eu tenho certeza que o fim do jogo permanecerá dentro de todas as pessoas que estiveram envolvidas nesse trabalho, porque ele ecoa dentro de todos nós e vai continuar.

Pergunta - Como é essa experiência de troca de personagens entre vocês dois?
Carvalho - Ele é quem gosta desse troca-troca (risos).
Celulari - É extremamente estimulante (mais risos). Nós começamos a ensaiar o espetáculo sem saber o que iríamos fazer, na verdade. Durante dois meses nós fizemos assim, até que o Chiquinho (o diretor Francisco Medeiros) propôs que nós fizéssemos isso também no palco. Está sendo muito interessante, mas deu um medo danado porque isso é muito difícil neste tipo de espetáculo, onde estes dois personagens têm uma espécie de código de dramaturgia muito rápido, ágil, em que às vezes ficamos atrapalhados com o próprio texto. Então, isso nós provoca risos internos, que a platéia não participa muito porque desconcentra, mas que é uma delícia. Faz parte do tal do jogo a troca, a exposição ao erro e brincar com isso, aonde fica claro que a camisa não importa, a ação do jogo é o que interessa. Numa partida de futebol, por exemplo, os centroavantes de equipes opostas trocam as camisas e o jogo continua. É muito estimulante, a gente se permite o assalto ao trabalho do outro, dos gestos, e também vários pontos escondidos, porque um personagem é cego e a gente o faz de olho fechado, então o personagem que está de pé e enxerga leva vantagem sobre o outro.
       E para o espectador, mesmo para aquele que não possa assistir duas vezes o espetáculo e não veja a alternância de atuações, mesmo assistindo uma das versões ele imagina a outra, o que também é muito estimulante. É a mesma coisa vista de outro ângulo, então, na verdade, é uma outra coisa.

Pergunta - Quando Beckett escreveu suas peças do teatro do absurdo havia um certo estranhamento de crítica e público quando o espetáculo era encenado. Hoje, seus textos são super aplaudidos pela crítica teatral e literária mundial, mas você acha que o público já recebe de uma forma melhor?
Celulari - Acho que Beckett nunca vai ser popular.

Bazarcultura - Mas no seu caso há um chamariz muito forte que são os trabalhos que você fez na TV. Como esse grande público que assiste você nas novelas tem recebido a peça?
Celulari - A primeira coisa é o seguinte, se o produto não for bom, pode ser Shakespeare, pode ser ator shakespeariano, global ou ator internacional, se o produto não for bom não adianta. Posso te dar quinhentos exemplos de colegas no auge do sucesso, em teatros com preços populares, que não tiveram bons resultados finais e fracassaram. Como eu já disse, o Beckett não vai ser popular nunca, mas se tornou um clássico, já sobrevive a mais de 50 anos, e hoje, para se ter uma idéia, existem cerca de 80 espetáculos dele sendo encenados pelo mundo. Há interesse pelo Beckett então, entretanto não é o mesmo interesse do público de televisão, mas seja qual for o motivo que leve o cidadão ao teatro, seja o nome de um ator ou ator conhecido, seja porque existe um filho ou primo seu representando, enfim, o mais importante é ir, porque o que o espectador vai ver será teatro, e se não for bem feito ele não vai gostar. Então, o melhor divulgador do espetáculo é o boca-a-boca, é quem vê. O Cacá tem uma frase que é ótima, que "teatro é um shopping", no qual você deve apresentar os mais diversos produtos.
Bazarcultura - Falando nisso, o espetáculo de vocês passou mesmo por um shopping em São Paulo (Teatro Folha no Shopping Pátio Higienópolis).
Celulari - É, por exemplo, era lá um produto (riso amarelo). Também nos fizemos juntos Molière, um outro tipo de público, agora, é um outro produto, é o Beckett. Tem que haver a comédia, tem que haver a tragédia, tem que haver o teatro do absurdo, experimental, baudeville, musical, tem que ter de tudo. Aí você pode dizer assim, "vamos fazer só o que o público quer", então o ator global só vai fazer isso. Isso não existe, eu não quero, paro minha carreira se tiver que fazer só aquilo que o público espera de mim. Mas acho que já aprenderam, com os últimos anos, que eu gosto de fazer umas coisas meio estranhas, então se é bem feito o cara vai lá me ver. Estar fazendo o Beckett é da maior importância para a gente, é por que isso fazemos. Agora, que isso seja tão simples quanto fazer uma comédia popular, é claro que não é. Mas há público, porque apresentamos o espetáculo de uma maneira clownesca, direta, não elaboramos dando esta suposta importância ao Beckett, a gente não ficou tentando dar a "pausa beckettiana", "o silêncio beckettiano", a gente quer é comunicar porque esse texto é importante para as pessoas de hoje, quem paga o ingresso tem que entender alguma coisa. Seja o que for que a pessoa entender, a comunicação desse texto para nós só tem razão se for direta, sem adaptação, é o texto integral.
Carvalho - Acho que o teatro tem pensar a cultura trazendo para a população alimento de toda e qualquer natureza, por outro lado, essa colocação de que o Beckett é um autor denso, ou como o público vai reagir com isso, em parte tem fundamento mas é uma colocação perigosa também, vindo da imprensa e de um determinado tipo de intelectualidade que faz essa afirmativa porque pode estar subestimando a capacidade de inteligência e emoção daqueles que vão assistir o espetáculo, é reduzir a capacidade deles, e isso é péssimo.
       Por outro lado, para o espectador acostumado com a Tanajura na novela das oito, com a cultura direta que invade as casas via TV, ou pode-se dizer uma sub-cultura, enfim, se você só dá esse tipo de opção, você continua alimentando o sono das pessoas, e isso é delicadíssimo. Então, é muito bonito quando você vê uma pessoa com uma bagagem, com uma capacidade de tocar um projeto muito mais de outra natureza, optar por fazer o Beckett, optar por fazer Don Juan do Molière. Através desse tipo de ação, você lê um tipo de coisa que não é o usar aquilo que se conquistou com uma exposição do seu trabalho, é levar outro tipo de alimento para as pessoas, nesse sentido com uma função importantíssima. Nesse caso, pode ser que esse tipo de atrativo, ou seja, o histórico do Edson, do Cacá, da Malu, do Lafayette, do Beckett, leve um outro tipo de público que possa beber de um outro tipo de espetáculo que normalmente não é oferecido.
Celulari - Só queria fazer um aparte nisso. Muitas vezes eu ouvi desse público de televisão, após o espetáculo, coisas emocionantes, como "eu nunca tinha vindo ao teatro, eu acompanho seu trabalho na televisão, te curto, peguei minha esposa e vim ao teatro, e ela também pela primeira vez, mas se eu soubesse que o teatro era isso, eu teria vindo muito antes". Bacana, não?
Carvalho - E outros podem também não entender, mas não importa, uma parte repercute, ecoará numa próxima vez que voltarem ao teatro. Nós vivemos dormindo, estamos acostumados, todo dia tomamos Lexotan através da televisão, da informação, ou seja, vamos criando um mundo absurdo. É importante que de vez em quando alguém diga "ahnn" (faz um gesto de sacudir), aí você acorda no outro dia do mesmo jeito e recebe outro "ahnn" (o mesmo gesto), até que talvez chegue uma hora que você acorde mesmo. Essa é a tragédia do viver.





Pergunta - Por que vocês escolheram esse texto?
Carvalho - Porque eu acredito ser importante que de vez em quando alguém diga "ahnn" para ver se alguém acorda (risos).
Celulari - Estreamos no dia 4, 5 de setembro o espetáculo em Belém, e dia 11 as torres caíram, foi um fim de um jogo. O ACM cai, sai do Senado, o fim de outro tipo de jogo. Você pode associar muito.
Carvalho - Sempre existe algum poder que está no centro e seu jogo vai terminando. É preciso renovar as cartas e o jogadores.
Celulari - Na Argentina agora, coitados, estão vivendo isso.
Carvalho - Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa está seguindo seu caminho. Inexoravelmente vai acabar. Você pode dizer, são só outros jogadores, porém terrivelmente talvez faça parte da condição humana subverter as regras do jogo para se levar vantagem, se criará um jogo viciado novamente. Talvez faça parte desse ciclo. Assim, que sentido tem isso tudo? No fim, talvez a gente olhe para trás e diga: talvez isso tudo tenha sido para nada. E será péssimo. Por isso, tenho que valorizar cada minuto, eu não posso estar dormindo, tenho que ficar acordado.

Bazarcultura - A partir de Hamm, a figura principal no texto, podem ser feitas duas associações com seu nome: o "ham actor", que em inglês significa canastrão, e uma referência a Hamlet, um dos personagens mais importantes da história do teatro. Esse jogo de palavras é intencional, pois o Hamm tem essas duas facetas na peça. Como é o desafio de interpretar Hamm, alguém que navega entre o egocentrismo tolo e a plena consciência da existência humana?
Celulari - Na verdade não existe um personagem principal na peça, existe aquele que está no centro no palco, e isto não quer dizer que ele esteja mesmo, pois ele é cego. Todo o tempo ele pergunta, "estou no centro?", e o outro diz que sim, mas como ele pode ter certeza que sim? E essa mutação faz parte do "clownesco". O centro é quem mais enxerga. Aquele que está assistenciando, o aprendiz, quer ir embora o tempo todo, repete "eu vou te deixar, eu vou te deixar", mas não consegue porque talvez exista um interesse dele estar no centro. Então, essas impossibilidades, essa aproximação do fim, essa consciência, essa crueldade desse tal destino de um nada para um nada, vai dando ao Hamm uma plenitude que o faz jogar tudo para o ar mesmo. Essas mutações são referentes a este jogo que ele mantém com o Clóvis, e ao contrário também, pois o Clóvis tem um momento no qual toma as rédeas do jogo. Procuramos, nessa versão mais "clownesca", acentuar isso como um jogo cênico, um jogo de pegada, estimulante também para o espectador, e não apenas intelectualmente. Só um se mexe, dois estão na lata de lixo sem pernas, e outro está cego e paralítico na cadeira de rodas. Então quando o Hamm pede, "dá uma voltinha comigo!", aquele bloco vai se mexer, o centro vai mudar de lugar, e uma volta, mesmo naquele espaço mínimo no palco, é uma volta ao mundo, ao mundo deles. E existem dois espaços, dois olhos, que são duas janelas, aonde se vê o lá fora.
Carvalho - E lá fora está tudo chumbo, como Bauru (risos).
Celulari - Uma janela você vê o mar, a outra a terra. Toda a hora o cego quer saber, "como é que está lá fora?" - "Zero, Zero e Zero".
Carvalho - "As ondas chumbo" (risos).
Celulari - Tá feia a coisa lá fora! "E no horizonte? Nada no horizonte?"
Carvalho - "O que poderia haver no horizonte para a gente ver?"

Pergunta - Quais os projetos futuros de vocês, depois de encerrar a peça aqui em Bauru?
Celulari - Eu vou descansar algumas semanas e devo estar fazendo uma novela na Globo no segundo semestre. Gostaria de tocar um projeto de cinema, tenho três convites - no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais - um deles vou tentar fazer nesse intervalo. Fiz poucos mas bons filmes, e já faz algum tempo que eu não participo.
Carvalho - Vou fazer agora o espetáculo "O Homem com a Flor na Boca", faço uma curta temporada em Ribeirão Preto, e vou dia 20 de maio para a Itália. Ao voltar, no fim de junho, vou direto para Belém dirigir uma montagem de Hamlet. Depois, em setembro, um espetáculo que eu fiz assistência de direção na Itália, vem para o Brasil abrindo o Festival de Teatro de Porto Alegre.

Pergunta - Vão voltar a encenar o Beckett?
Carvalho - Eu penso em trabalhar de novo com o Beckett, penso muito também trabalhar com Pirandello, que eu tenho grande paixão, esses autores que tocam alguma coisa que não seja simplesmente um discurso, Calvino, por exemplo.

Pergunta - O que vocês acham que Beckett deixa ou ensina hoje?
Celulari - Para mim, eu acho que é ver as coisas, os modos, enfim, pensar sobre aquilo que você vive, faz, se relaciona. A peça, se você ver "Esperando Godot", "A Última Gravação", "Dias Felizes", "Fim do Jogo", são sobre o mesmo tema, tudo a mesma coisa. Ele insiste, insiste, e é como se focasse e focasse, e sobrasse o humano, cheio de sujeiras e besteiras, quantas vezes risíveis. É por isso que o espetáculo tem esse filão do riso presente. Quando o Beckett dirigia suas próprias peças, e passava por países que não conhecia a cultura ou que não havia morado, ele chamava um comediante para assistir um ensaio e saber se naquela tradução, ou na maneira como estava sendo encenada uma cena em particular que deveria resultar em humor, seria mesmo entendida como humor, era importante o humor. A exposição do humano risível. Então, eu acho que a genialidade dele, que o transformou já em um autor clássico em tão poucos anos, é o que ele vale nessa essência, com olhos tão agudos, tão cruéis, duros, verdadeiros, ele conseguiu ver e aprofundar coisas que muitos autores abordaram, mas ele fez de uma maneira que o torna único.
Carvalho - O Beckett é um grande cirurgião da cegueira geral, ele nós faz enxergar, rindo, refletindo, cheio de poesia, crueza, trapalhada. Através de situações absurdas, ele te contextualiza, te faz enxergar de um modo cheio de inteligência. Os grandes autores só se tornam grandes porque só colocam a condição humana.




(Matéria realizada para o site Bazarcultura)

domingo, 3 de outubro de 2010

Pagamentos por celular serão popularizados

O Banco do Brasil e a Cielo anunciaram ontem parceria com a Oi para operar um sistema  de pagamentos móveis (mobile payment)  em grande escala em todo o país.
Segundo as empresas, o objetivo é popularizar o acesso aos serviços financeiros. O acordo potencializa o pagamento via celulares, pois alia a tecnologia  da Oi, a capacidade de crédito do Banco do Brasil e a rede de pagamentos do país operada pela Cielo.
A parceria ampliará a rede de aceitação de pagamento por meio de celular, que passará de 75 mil para 1,8 milhão de estabelecimentos.
NOVOS CARTÕES /A operação envolverá dois negócios.
  O Banco do Brasil e a Oi firmaram acordo para emissão de cartões de crédito co-branded (o cliente pode comprar em qualquer estabelecimento credenciado com a bandeira do cartão e não somente na rede varejista em que o cartão foi emitido) e os pré-pagos.
As empresas miram atingir principalmente a baixa renda, que usa o celular pré-pago. Por isso, o banco estuda também oferecer o cartão pré-pago. Ele deve ser lançado no primeiro semestre do ano que vem.
Quanto a formatos, as empresas vão criar três: um cartão convencional de plástico; um cartão em  chip que será inserido no celular para pagamento  contactless (o consumidor só precisa encostar o celular em uma leitora para pagar suas contas); e o pagamento remoto por linha telefônica.
Em outra frente, Cielo e Oi anunciaramm a criação de uma união direcionada ao desenvolvimento da aceitação de mobile payment no Brasil.
“A combinação das experiências das empresas gerará um portfólio diversificado de produtos financeiros, com proposta de valor nova e atraente para os clientes”, afirma o diretor de Cartões do Banco do Brasil, Denilson Molina.
O acordo foi comunicado à CVM (Comissão de Valores Mobiliários). A empresa de pagamentos da Oi,  a Paggo, e a Cielo formarão uma nova empresa que será destinada a captura, transmissão, processamento e liquidação financeira de transações comerciais por meio de celulares.