Essa conquista da auto-suficiência ele faz questão de enaltecer, não só por vaidade, mas também porque se sente muito feliz com isso. Bonassi vem de uma família paulistana de classe média-baixa da Mooca, seus pais eram metalúrgicos. Conseguiu passar na USP, fez Cinema na ECA. Seu primeiro curta, "Os circuitos do olhar", é de 1984. Mas ele cismou em tentar mais, queria escrever. Pegou esse gosto lá pelos 14 anos, quando escrevia bilhetes para uma garota que não olhava na sua cara. Não deu certo, os bilhetes não foram entregues, nem nunca se olharam, mas Bonassi seguiu escrevendo. Como muitos escritores, começou com um livro de poesias, "Fibra Ótica" (Massao Ohno Editor, 1987). O segundo, agora de contos, levou muitos não, dez para ser exato, algumas editoras até disseram que ele deveria procurar outra coisa para fazer. Finalmente, em 1989, saiu "O Amor em Chamas" (Estação Liberdade).
Depois, veio o primeiro livro do autor de mais repercussão, o romance "Um céu de estrelas" (Siciliano, 1991), que Tata Amaral adaptou para o cinema em 1995. Ganhou prêmios de melhor filme nos festivais de Biarritiz (França), Brasília e Trieste. A história é uma tragédia da Mooca: o metalúrgico Vítor não aceita o fim do noivado com a cabeleireira Dalva, ambos são cheios de sonhos, mas terminam num violento desespero social e emocional.
Dezesseis livros vieram em seguida, seis destes na literatura infanto-juvenil, que o autor confirma serem seus mais vendidos, como "A incrível história de Naldinho - um bandido ou um anjinho?" (Cosac & Naify, 2001), sobre crianças que acabam no mundo do crime. Por abordar temas assim, sua literatura infantil é dita "violenta", porém Bonassi crê que este é um dos enfoques corretos para as crianças das grandes cidades. "Acho a literatura infantil de hoje muito babaca, sem nada da realidade. Não dá para trabalhar só contos de fadas com crianças que vivem num mundo tão desigual", comenta.
Por outro livro infantil, "Declaração Universal do Moleque Invocado", (Cosac & Naify, 2001), uma subversão bem-humorada da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o autor foi indicado como finalista do Prêmio Jabuti 2002. A cidade de São Paulo, suas ruas, casas, cortiços e pessoas, foram inspiração para outro livro do autor que concorreu ao mesmo prêmio no ano seguinte, agora na categoria Contos e Crônicas por "São Paulo/Brasil" (Dimensão, 2002).
O último livro de Bonassi é "Prova Contrária" (Objetiva, 2003), uma criação que surgiu de uma lei sancionada em 1995 pelo então presidente FHC: o Estado passou a reconhecer como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação, em atividades políticas, no período de 1961 a 1979, bem como assumiu a responsabilidade pelas arbitrariedades cometidas por seus agentes e estabeleceu indenização financeira aos familiares das vítimas. No livro, uma mulher consegue esse dinheiro do governo, já que seu marido sumiu durante a ditadura. Ela compra um apartamento e, justamente no dia da mudança, o esposo reaparece depois de tanto tempo. Ele não dá só uma explicação para isto, mas logo três: ou ele é um fantasma, ou é um traidor da causa revolucionária que resolveu sumir todo esse período, ou é um homem que havia se cansado da relação com a esposa e abandonou-a.
Berlim
Um fato que marcou a obra de Bonassi foi uma bolsa de estudos alemã ganha em 1998. O Kunstlerprogramm do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst) paga aos escritores 2.500 dólares para escrever um livro e banca sua moradia por um ano. Ele adorou viver numa "cidade tão louca como Berlim", e produziu "O Livro da Vida", projeto de contos curtos com mil histórias do mesmo tamanho. Algumas delas já foram publicadas no Brasil: "100 Coisas" (Ed. Angra, 2000) e em "Passaporte" (Cosac & Naify, 2001).
Mas o mais importante dessa temporada alemã é que depois Bonassi decidiu de vez ser um escritor. Ele conta que resolveu abrir mão de alguns confortos materiais e salário burguês, hoje prefere viver modestamente fazendo aquilo que ama, escrever. Tanto que vai abandonar sua coluna "Macho" na Folha de S. Paulo por não se sentir mais feliz com ela. A propósito, declara que o jornalismo e a propaganda são a morte do escritor. "Para falar a verdade, eu odeio patrão", completa.
Leia um dos contos de "100 Coisas":
"Antes de casar, Zeca escolheu muita mulher até escolher Silvia, que engordou. Já Hirani escolheu muito marido até escolher Dario, que bate nela. César escolheu muito amigo até escolher Wilsinho, que o levou à cadeia nuns lances aí. Cristina escolheu várias amigas até escolher Hirani, que roubou seu marido. O marido de Hirani escolheu muitas amantes até se apaixonar por Silvia. Cristina escolheu muitos amores até escolher Wilsinho, que está preso. César escolheu muitos companheiros de cela, até encontrar Genésio, que o fez descobrir um outro lado de si. José Carlos escolheu ser corno."
Faça sua escolha - conto retirado de "100 coisas", de Fernando Bonassi (Angra, 2000)
Aqui e Agora
No Salão de Idéias da II Bienal do Livro de Bauru, o tema proposto para Bonassi foi "Literatura Aqui e Agora", claro, um trocadilho com sua obra tida, às vezes, violenta e o extinto programa mundo cão da TV. Ele não nega totalmente esse título fácil, pois parte de sua obra aborda temas violentos sim, como a participação no roteiro de "Estação Carandiru", de Hector Babenco. Por sinal, um trabalho que Bonassi tem duas visões. A primeira, uma grande experiência pessoal trabalhando no Carandiru durante a roteirização com o próprio Babenco e Victor Navas (por um ano e meio Bonassi ajudou os detentos a escreverem cartas). A segunda, o desagrado com o resultado final, "um filme muito acadêmico, como novela das oito", segundo sua opinião.
Mesmo assim ele exalta o sucesso de obras como "Estação Carandiru", "Os Matadores" (co-roteirização dele também) e "Cidade de Deus". "É uma abertura para os problemas sociais. As pessoas escolheram ver as mazelas nacionais, esse novo governo representa isso", analisa.
Em relação a outros temas, o autor citou seu romance "O amor é uma dor feliz" (Moderna, 1997), uma obra quase autobiográfica narrada por um garoto que cresce num bairro operário decadente, mas que consegue passar no vestibular para cinema e vai estudar na melhor universidade pública do país. "Nesse livro, tudo o que escrevi é verdade, principalmente o que eu inventei", brinca.
Em relação à "Geração 90", um nome inventado pela imprensa para designar os novos escritores que entraram em evidência na última década do século passado, como Marçal Aquino, José Roberto Torero, Marcelo Mirisola, Bonassi opina que é mais reducionista do que fiel à realidade. "Eu, por exemplo, formei minha cabeça durante a década de 70 e comecei a publicar já nos anos 80. É mais um recorte da mídia. Alguns jornalistas e/ou críticos dizem que uma característica que une todos esses escritores é o extremo realismo nos textos, o que não é verdade. 'O fluxo silencioso das máquinas' (Ateliê Editorial, 2002), de Bruno Zeni, para mim o melhor autor da atualidade, não tem nada de realismo. São descrições de rostos dos usuários do metrô", comenta.
E a literatura de Bonassi também não pode ser facilmente inscrita em um estilo. A maneira como ele escreve, muitas vezes sem dar nome aos personagens, pouca descrição, frases curtas, que lembram uma poesia crua, lembra muitas vezes o cinema, ou até letras de músicas. "Gosto dos personagens em ação com uma descrição bem enxuta. Não gosto de narradores oniscientes, não acredito nisso. O leitor é que deve fazer suas escolhas e criar suas opiniões", afirma.
Os próximos planos de Bonassi são um livro infantil, "Declaração Universal da Menina Esquisita", e a participação num projeto editorial que pretende contar várias histórias sobre lugares que estão sumindo em São Paulo, como os parques de diversões, locais que o escritor vai transformar em livro.
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