Certamente, uma das coisas mais marcantes na peça "Um porto para Elizabeth Bishop" é a sua reciprocidade: a personagem amou intensamente o Brasil da mesma forma como o público do espetáculo a ama. O grande achado da autora deste monólogo, a escritora e jornalista Marta Góes, foi conseguir mostrar o fascínio da poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979) pelo Brasil, e também reproduzir a simpatia que os brasileiros que viveram com ela sentiram. A atriz Regina Braga representa uma mulher sensível e carente que é adotada pela platéia.
E esse amor não é piegas, pelo contrário, sabe ser crítico e bem-humorado. Nós rimos de Elizabeth contando nossas misérias: o atraso do país (Bishop não acredita como tudo é tão desorganizado), e a elite permanente ("a elite no Brasil deve ser muito pequena, pois são todos parentes, os políticos, os artistas"). E também ficamos emocionados com a descrição de nossos pequenos detalhes: mães embalando com carinho os filhos em grossas mantas mesmo no verão, e a nossa mania de tentar ajudar aqueles que gostamos ("todo mundo me receitava um remédio, o Brasil é o melhor lugar do mundo para ficar doente").
Regina Braga, 30 anos de carreira e vários prêmios (duas vezes o Molière, 1983 com "Chiquinha Gonzaga", e 1991 por "Uma relação tão delicada"), procurava uma peça que falasse sobre o Brasil e pediu ajuda para Marta Góes. Ela tinha acabado de ler "Poemas do Brasil" de Elizabeth Bishop e se encantava com a poeta que havia morado em Petrópolis (RJ), cidade que ela passou sua infância. As duas, amigas que já trabalharam juntas (Regina dirigiu "Prepare seus pés para o verão", de Marta), decidiram então montar uma peça a partir das cartas e poemas de Bishop que falavam do Brasil. Convidaram para dirigir José Possi Neto ("Emoções Baratas", "Tratar com Murdock").
A peça estreou no Festival de Teatro de Curitiba do ano passado, e Regina Braga já ganhou o prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) por sua atuação, além de Marta Góes ter sido indicada ao Prêmio Shell deste ano.
Todo esse reconhecimento tem motivos de sobra. Regina está radiosa no espetáculo e a delicadeza dos temas impressiona: a relação amorosa que Bishop teve com a arquiteta carioca Lota Macedo Soares é tratada de uma forma muito natural, relatando o convívio das duas, seus sonhos, brigas, preconceitos sofridos; e os caminhos tortos que um artista percorre, vivendo com a solidão e a eterna dúvida da imperfeição, no caso da poeta marcados pelo alcoolismo e a depressão, magnificamente encenados por Regina. Destaque também para o deslumbrante cenário de Jean Pierre Tortill.
Elizabeth Bishop fazia uma viagem de circunavegação pela América em 1951 e desembarcou no porto de Santos para uma escala de poucos dias no Brasil. Visitando Petrópolis, ela comeu o "fruto proibido": provou um caju e teve uma grave intoxicação alérgica. Só que ao invés de ser expulsa do "paraíso", ela foi acolhida nele: se apaixonou por Lota (que cuidou da poeta enquanto ela estava doente) e pelo país, acabou ficando por longos 15 anos. Nesse período sua poesia floresceu, ela ganhou o Prêmio Pulitzer de poesia em 1956.
Uma das mais belas poesias de Bishop, "The Shampoo", fala da paisagem brasileira e dos cabelos de Lota:
"O banho de xampu"
"Os líquens - silenciosas explosões nas pedras - crescem e engordam, concêntricas, cinzentas concussões. Têm um encontro marcado com os halos ao redor da lua, embora até o momento nada tenha mudado.
E, como o céu há de nos dar guarida, enquanto isso não se der, você há de convir, amiga, que se precipitou; e eis no que dá. Porque o Tempo é, mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas cadentes, arredias. Para onde irão elas tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia amassada e brilhante como a lua."
(Tradução de Paulo Henriques Britto do poema "The Shampoo", publicado em "Poemas do Brasil", Cia. das Letras, 1999)
A atriz Regina Braga concedeu uma entrevista coletiva pouco antes do espetáculo. Leia a seguir alguns trechos:
Pergunta - Quais a sensação de estar encenando pela primeira vez um monólogo?
Regina Braga - Pânico! (risos). Eu sempre fui uma atriz que se apoiou nos companheiros de peça nos momentos de dificuldade. Acho que o que me salvou foi o texto da Marta, é um texto pelo qual as pessoas se interessam, todo mundo fica curioso com a história de uma gringa observando e sentindo o Brasil. E o Possi foi um diretor muito atencioso nos ensaios, alguém que me deu muito carinho.
Pergunta - Comente a direção de José Possi Neto.
Braga - Ele é um diretor muito generoso, um dos poucos que não me machucaram. Porque o início de uma encenação é sempre muito difícil, você se expõe ao ridículo quando começa a ensaiar. O Possi também soube ver o humor da peça, em cenas que a princípio eu não tinha notado.
Bazarcultura - Muitos críticos afirmam que as melhores poesias de Elizabeth Bishop foram escritas no período em que ela viveu no Brasil. Você acha que isso deveu a?
Braga - No início do espetáculo, numa cena que adoro fazer, ela diz que no Brasil "há um excesso de cascatas". Então foi isso, ela se deslumbrou pelo Brasil, primeiro pela paisagem, as cachoeiras de Petrópolis, e depois pelos brasileiros, que deram afeto e cuidados para ela. Bishop era órfã dos pais, sofreu muito, quando ela se viu sendo tocada, cuidada pelos brasileiros, se sentiu muito bem. Como ela diz, sofreu um "choque amoroso". Na peça é nítida a melhora da sua vida quando ela passa a morar no Brasil.
Bazarcultura - Como é interpretar uma personagem tão sensível, e sendo esta uma estrangeira observando o Brasil?
Braga - É ótimo. Eu me sinto muito a vontade para criticar o país, pois interpreto uma estrangeira (risos). Eu adoro fazer.
Bazarcultura - A maior parte do texto da peça é baseado nas cartas que Bishop escreveu para seus amigos. Você já tinha trabalhado com um texto feito de cartas, e como foi o trabalho junto com a Marta Góes na sua elaboração?
Braga - Na verdade, a Marta transformou as cartas em textos dramáticos, são poucos os momentos em que eu declamo as cartas, como quando a Elizabeth escreve uma carta para sua médica, a doutora Anne. A Marta foi escrevendo o texto e me mostrando, outras versões foram surgindo de observações em conjunto nossas. Sabe, o escritor às vezes não percebe a redundância de uma cena, ou como ela poderia ser transformada num gesto, coisa que o ator vê logo.
Pergunta - Como você vê o teatro brasileiro hoje?
Braga - Desde quando comecei vem piorando. O público vem diminuindo. "Uma relação tão delicada", por exemplo, ficou em cartaz por quatro anos. Antigamente, era normal você fazer um espetáculo durante dois anos em São Paulo, um no Rio, e mais um excursionando pelo Interior e outras capitais. O ator não consegue mais viver da bilheteria, precisa de patrocinadores, o que muitas vezes tira a sua liberdade.
(Matéria realizada para o site Bazarcultura)
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