quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

A pílula



Cada vez que tomo a pílula não sinto nada. O efeito não vem nem depois de que a droga passa para a corrente sangüínea. Mas me garantiram que essa não é uma pílula de farinha, há uma química nela. Não ligo, o importante é que estão me pagando.

Escrevo isso para passar o tempo. É muito chato ficar presa dentro dessa casa. Já faz 13 dias. Não tenho muito o que fazer, a comida vem pronta, as roupas são mudadas todo dia, enfim, tudo o que eu preciso é colocado numa porta giratória. Tenho uma TV, mas é um circuito fechado que só passa filmes antigos, sem cores. Ainda bem que não sou obrigada a ver.

Acho que nunca aceitaria viver aqui sem a grana. A Luísa me convenceu. Depois de tanto tempo sem ver ela, resolvi acreditar que o dinheiro era fácil. Ela estava certa, todo o dia antes das entrevistas eles me mostram os recibos dos depósitos.

Posso usar o dinheiro para viajar. De quem sinto mais saudade aqui? É lógico que é você, Alice. Pena que você nunca mais vai querer olhar na minha cara. Se não fosse isso já teria saído dessa casa. Você acabou comigo, linda. Mas pelo menos vou ficar rica. O melhor mesmo é ir para longe. Um lugar para ficar quieta e te esquecer.

Só que aqui não vou conseguir. Esse médico só faz perguntas do que eu vivi, faz questão de detalhes. Essa semana percebi que conto coisas para ele que nunca contaria a ninguém. No contrato que assinei esse lugar se compromete a nunca divulgar meu nome, talvez seja isso.

Quando tinha 16 anos me deu vontade de brincar com uma garrafa. Era uma fanta, só que antes de enfiar eu quis beber. Como fui burra! O ar da garrafa prendeu ela dentro de mim. Meus pais tentaram arrancar mas doía muito, eu gritava. Como o resto da minha família, eu já era peluda naquela época. Os pêlos pubianos ficaram presos e cada vez que puxavam era uma dor horrível. Meu pai queria puxar até arrancar, mas minha mãe implorou para ele chamar um médico, que só conseguiu tirar depois de serrar o vidro.

É claro que todo mundo ficou sabendo na rua e na escola. Os meninos passaram a andar com uma garrafa de fanta na mochila e quando me viam sempre me perguntavam rindo se eu queria usar. Até minhas amigas queriam saber se minha boceta tinha ficado larga. Eu queria morrer. Foi o que contei ontem na entrevista.

Sempre tive dificuldade de falar sobre tudo que possa ser relacionado com sexo. Aqui aprendi aqui a contar tudo o que me envergonha ou me magoou. Mas não me sinto melhor com isso, continuo sentindo vergonha e mágoa do mesmo jeito. Quem disse que falar a verdade faz bem? Só espero juntar dinheiro com isso, quando sair sei que as coisas vão ser iguais.

- Então esse paciente chegou num estágio tão avançado da mitomania que mentia para todos ser mulher e inventava coisas até escrevendo?

- Sim, a droga só conseguiu fazer parar a depressão. Um dia trouxemos essa Alice aqui. A princípio ele reagiu bem, mas gritou quando ela lhe chamou de mentiroso. Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano! – ele gritou várias vezes.

- O que aconteceu com ele?

- Praticamente não reagiu aos tratamentos. Está internado aqui há seis anos e pensa estar juntando uma bolada. Por enquanto, essa é a única vida em que ele já se ajustou.

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