quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O carteiro melancólico

Parado no acostamento Gilberto esperava por um ônibus. Mais uma vez ele recomeçava sua busca.



Como sempre faço cheguei naquela cidade como migrante procurando trabalho. Fiquei um mês numa pensão, conheci pessoas, freqüentei bares, fui à missa e trabalhei de auxiliar de tipógrafo. Era um tempo em que a simples disposição para trabalhar valia muito mais do que a experiência nas funções.

Quando me senti acomodado fui enviar a carta. Naturalmente era um endereço inventado, mas não tinham como saber. O correio funcionava mal e porcamente no país, na maioria das cidades não havia mapeamento das ruas. Disse que o endereço me fora entregue por um cliente novo que passara com pressa pelo trabalho e pediu o favor. Eram, dizia o falso cliente, notícias de família esperadas com aflição.

Com apenas dois funcionários disponíveis na agência, o antigo carteiro pediu para eu deixar a carta ali para que ele um dia procurasse o endereço. Simulei a mesma irritação de sempre e exigi uma solução rápida. Fui informado mais uma vez de que quase ninguém queria ser carteiro por causa do baixo salário e dos poucos recursos para trabalhar.

Então eu mesmo me ofereci para entregar a carta fantasma. Dois dias depois voltei para comunicar meu falso êxito na entrega e com empolgação de novo pedi uma vaga de carteiro. Essa era minha estratégia básica em todas as cidades pelas quais passei. Nunca deixei suspeitas.

Daquela vez me deram logo de início uma sacola verde de pano com cartas para serem entregues e um mapa pequeno da cidade. Três páginas, mal desenhado e com inúmeras ruas faltando. Meus dois colegas nem saíram para trabalhar, como novato eu que me virasse sozinho. Era exatamente com o que contava. Meu plano só daria certo caso não me amolassem. Pude levar sossegado todas as cartas para meu quarto na pensão. Apenas tinha a obrigação de retornar no final do dia com a sacola. Porém, não havia o mínimo controle de quantas correspondências carregava ou devia entregar.

Sempre violo as cartas que me parecem mais pessoais. Envelopes com caligrafias bonitas ou feias são os que me interessam, demonstram o capricho ou o desprezo das pessoas. As cartas formais, datilografadas ou com letras que imitam as máquinas são comuns, assuntos de negócios. Depois da minha seleção só uso o vapor da chaleira. É um processo que aprendi a tornar rápido. Abro qualquer carta em menos de um minuto. Já a leitura pode levar várias horas.

Admito que a minha motivação inicial ficou um pouco menor, aprendi a ter prazer apenas em ler esses folhetins pessoais. Afinal minha obsessão beira o impossível: procuro a mulher que amo, que desgraçadamente perdi e fugiu de mim sem deixar rastro, só descobri que ela mudou de nome e sumiu do mapa, mas que depois de vários anos passou a enviar cartas para amigos e parentes sempre mudando o remetente.

Foi um custo descobrir isso. Vivemos juntos dois meses numa paixão intensa, mal sei quem são sua família e conhecidos. E os poucos que conheço me odeiam. Falam que eu sou louco e até tentaram me matar. Então só me restou transformar essa busca na minha vida. Acostumei-me a subornar pessoas, praticar crimes, fazer ameaças e mudar de identidade constantemente para encontrar as pistas que um dia me levem de novo até a minha Sônia. Ou seja lá o nome que ela tem agora.

As histórias das cartas deixam assim os meus dias, meses e anos de fracasso menos tristes. Descobri ser agradável ler as correspondências alheias. Sinto-me como um semideus onisciente da vida dos outros. Naquela sacola verde meu consolo veio nas cartas de Mário Lopes Pedroso ou, como descobri depois, Maria Carmem Espinosa. Casada, mãe de três filhos, ela tinha um romance secreto com Ademar Silveira Filho.

Talvez o mais interessante fosse que o casal de amantes era vizinho. Toda semana Maria pedia para um moleque levar as cartas de Mário até o correio. Na certa eles se viam todos os dias morando um do lado do outro, mas deviam manter as aparências e só dizer bom dia.

Era apenas ela quem escrevia, estava apaixonada e parecia estar disposta a tudo. Ademar não era casado, era um solteirão. Pelo que entendi ele tinha relutância em assumir o caso com Maria. Ela, ao contrário, propunha abertamente que os dois fugissem.

Quando entregava as cartas para Ademar nunca vi empolgação em seu rosto. Era um homem magro, alto, de cabelo escorrido e bigodinho. Descobri que já era aposentado, mesmo tendo menos de 50 anos, porque tinha uma deficiência em uma das pernas. Passava os dias em casa sem ter o que fazer. Ou não. Imaginei que ele devia ter encontros escondidos com sua vizinha. Por ser dona-de-casa ela também ficava muito tempo dentro do lar e, como o marido trabalhava e os filhos estudavam, também permanecia sozinha.

Porém uma de suas cartas negou tudo isso. Era admirável, os dois nunca nem haviam se beijado na vida. O amor só não era platônico por parte de Maria porque já tinha sido declarado. Ela não sentia mais nada pelo marido, viviam distantes. Lá de vez em quando, antes de dormir, ele abria as pernas da mulher e introduzia seu pênis. Ela escrevia que era doloroso, primeiro porque não gostava mais dele e depois porque sua vagina sempre estava seca. Mas pelo menos ele gozava rápido e ia dormir.

Já por Ademar ela tinha algo de gratidão. Por ser atencioso e gentil com ela, Maria acreditava que aquele homem fosse o príncipe coxo que lhe traria a felicidade amorosa. Como contraponto ao marido ela escrevia que depois de muitos anos voltava a ficar excitada só de pensar em um homem.

Mais de um mês lendo essas cartas me deixou ansioso, esperava que Maria e Ademar fizessem algo e assumissem de vez seu amor. Porém ele permanecia impassível, pelo correio nunca enviara nenhuma carta a ela. Não conseguia entender o porquê, se ele era tão gentil com Maria, como ela mesma dizia, e ela era mulher de meia idade bonita ainda, devia haver um motivo forte para ele permanecer em silêncio. Quem sabe fosse o medo de se envolver com uma mulher casada ou outro amor existisse nessa história.

E minha segunda suposição se provou verdadeira. De uma forma bem forte. Por acaso resolvi abrir um dia a correspondência endereçada ao advogado Sergio Monteiro. O remetente era um tal de Romeu Silvestrini, ou na verdade Ademar Silveira Filho. Os dois tinham uma relação homossexual há mais de dez anos, mesmo com Sergio sendo casado e pai. Eles se encontravam numa casa chamada de amarela, que nunca descobri onde ficava. As mensagens que trocavam eram notícias da vida de ambos e queixas de saudades por quase sempre estarem longe. Ademar escrevia ao seu amante sobre a angústia que sentia com o assédio de Maria. Ele lamentava seu sofrimento , desejava de verdade que ela fosse feliz mas não podia nunca contar o real por motivo de sua indiferença.

Senti-me irmão dessas três vidas melancólicas que carregam um fio de esperança por um amor impossível. Eu sei o que é esperar em vão, por isso antes de procurar outra cidade entreguei cartas de Maria para seu marido e as de Ademar e Sergio para o pasquim local. No acostamento onde esperava o ônibus para partir uma pessoa me disse que na cidade ocorreram a poucas horas dois assassinatos e um suicídio. Uma mulher e dois homens. Sei que fiz o melhor por eles, a dor de nunca ter seu amor é muito pior.

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