quarta-feira, 31 de janeiro de 2007
RG
Me abaixei para pegar um documento de identidade que encontrei na rua. Logo vi que tinha o meu rosto, apesar de mais jovem. O nome era outro e a data de nascimento também. Pensei que pudesse ser alguma falsificação, mas o número do documento era diferente do meu.
Guardei no bolso e fui embora pensando no homem da foto. Queria conhecê-lo , saber se é algum parente. No meio da manhã liguei para minha mãe e perguntei se conhecia aquele sujeito. A resposta foi uma pergunta:
- De onde você tirou esse nome?
Nunca gostei desse jeito de me tratar, como se eu sempre estivesse em risco ou fosse retardado. Preferi dizer que ele tinha passado no meu trabalho quando eu não estava e deixado lembranças para mim, mas não havia dito se era amigo ou parente. Seu tom de voz mudou do espanto para o aborrecimento:
- Eu não sei quem é, mas fica longe desse homem... vai saber quem pode ser!
Dei uma risada e me despedi. Antes, porém, ela disse para avisar se ele aparecesse de novo e pediu para passar na sua casa quando acabasse meu expediente. Não me preocupei mais com isso, mais tarde ou outro dia ia falar com um conhecido meu na polícia sobre o documento.
No final do dia fui beber um pouco em um bar perto do trabalho. Velhos ressentimentos também foram ingeridos junto com a cerveja. É isso na verdade que te faz ficar bêbado, na garrafa junto com a bebida eles colocam pequenas porções daquilo que incomodam as pessoas, seja o que querem esconder ou libertar. O álcool só estimula a beber numa quantidade suficiente para que esses monstrinhos possam fazer o serviço dentro do corpo.
A minha dose tinha a frustação com minha família. Esse documento que encontrei na rua bem que poderia ser a chance de me aproximar mais de meus parentes. Sei que eles pedem dinheiro, te julgam, exigem hipocrisia, dão presentes horríveis e várias outras maravilhas, mas dá muita inveja ver meus amigos serem abraçados e beijados pelos pais. Já passei dos 30, tenho meu emprego e minha casa, mas este homem que olha para o fundo de um copo de cerveja num bar esfumaçado queria voltar a ser criança para tentar de novo.
Passei muito tempo culpando quem me criou por essa forma de isolamento. Minha família mal conversa e se vê, sempre foi assim. No final é um ciclo de brutalidade, meus avôs fizeram isso com meus pais também. Um monte de filho para alimentar, quase nenhum ensino, um emprego vagabundo na roça que pagava uma miséria e tirava o couro. Se embebedar e descontar nos filhos era a opção mais fácil mesmo para meus avôs. Foi essa a educação da minha família. É claro que o mundo está cheio de histórias assim, mas isso lógico que não é consolo. Queria mesmo é conhecer alguém parecido comigo, de preferência para beber e chorar.
Após os tradicionais malabarismos para não tropeçar na rua cheguei em casa e caí na cama com a roupa do trabalho mesmo. Não sei ao certo quanto tempo dormi, mas não deve ter sido muito porque acordei com pouca ressaca, apesar de bem cansado. No fim das contas não fez importância, o motivo para ter despertado foi bem pior. Meu pai me ligou e dizia que minha mãe estava morta.
Ele chegou do trabalho e encontrou ela caída no chão com um ferimento de bala no peito. Desliguei e imediatamente comecei a chorar. Além da dor da perda, senti culpa por não ter ido ir ver ela como havia pedido. Fiquei mal também por tudo aquilo que havia pensado no meu porre e de certa forma por ter julgado ela. E também porque percebi a voz embargada de meu pai, um som que nunca tinha ouvido na vida.
É interessante que na hora da pancada, seja ela boa ou ruim, você não tem noção de que seus sentimentos têm uma avalanche de ingredientes. Naqueles segundos, depois que larguei o telefone e fui pegar um carro, eu apenas chorava e sentia dor, só depois fui pensar em tudo que estava me dilacerando.
A casa e a rua dela estavam cheias de gente. Entrei pela porta da frente sem pressa, procurando pedir licença para aqueles que não me reconheciam, fazendo pouco barulho. Acho que era medo de ver ela morta, deitada no chão sem movimento.
O corpo estava na cozinha com um lençol por cima. Foi estranho, nesse momento foi embora todo o receio que sentia, automaticamente me abaixei e descobri minha mãe. De olhos fechados, a expressão no rosto não era de medo ou angústia pela morte, mas comum. Eram os mesmos olhos cansados, a boca sempre sem batom e o cabelo pentedo para trás. Será que todos os mortos são assim? Quando percebemos que não tem mais volta, tudo fica para trás e morrer é o caminho aceito de bom grado?
Notei o ferimento no peito e o medo voltou. Rapidamente cobri ela de novo e fui procurar meu pai. Ele estava logo atrás de mim. Nós dois já não chorávamos mais. Tive o reflexo de abraçá-lo, mas não fiz isso. Tenho certeza que ele também quis fazer isso. De novo nosso distanciamento falou mais alto. Perguntei o que aconteceu:
- Me disseram que você veio aqui de noite. O que aconteceu? – ele respondeu perguntando com angústia.
- Como? Não, ela me pediu para vir aqui hoje mas não pude vir – porque eu não disse que na verade eu não quis aparecer?
- Dois vizinhos te viram passar na rua e entrar na casa – ele apontou para pessoas que realmente eu conhecia, mas que não via fazia tempo.
- Não, deve ter sido outra pessoa... eu, eu estava no bar bebendo e depois fui para casa – disse com vergonha.
- Paulo, filho, me diz a verdade... quero saber quem fez isso – logo depois começou a chorar. Foi uma das poucas vezes que ele me chamou de filho.
Meu pai foi para a sala e sentou-se em silêncio. Os vizinhos vieram falar comigo e disseram ter certeza de que era eu, apesar de não ter cumprimentado nenhum deles. A polícia também veio falar comigo e me fazer perguntas. Disse os horários que saí do trabalho e passei no bar. No meu prédio não tem porteiro nem câmera, então só não poderiam confirmar minha chegada em casa.
A polícia disse que não havia sinais de arrobamento ou luta na casa e nada parecia ter sumido. Os vizinhos também não ouviram nenhum barulho. Ao que parece, o assassino foi servido pela minha mãe antes do crime. Comeu doce de banana e bebeu refrigerante.
Era um dos muitos doces de minha mãe que eu gostava de comer. Só nesse instante lembrei do que aconteceu de manhã. Tirei do bolso o documento de identidade que achei.
- Deve ter sido esse filho da puta! – disse com raiva, lembrando a reação estranha da minha mãe quando falei seu nome por telefone.
Contei o caso para a polícia e disse que poderia ter sido ele. Me disseram que parecia de fato um documento verdadeiro mas precisava antes ser checado no sistema de registro geral da polícia. Enquanto faziam isso perguntei ao meu pai se ele conhecia alguém com esse nome ou mesmo se eu não poderia ter algum parente muito parecido comigo. A resposta também foi negativa, mas diferente da minha mãe ele falou com convicção.
Após a polícia técnica terminar de analisar a cena do crime e levarem o corpo da minha mãe para o IML, o pessoal que foi checar o documento voltou. Nem o nome nem o número existiam. Para o Estado aquele rosto não pertencia a ninguém. A única coisa que poderiam fazer quando amanhacesse era investigar como aquele documento foi forjado.
Isso me deixou preocupado também com meu pai. Não sabia se o cara que fez isso iria atrás dele. Liguei para aquele conhecido meu da polícia e expliquei o que estava acontecendo. Pelo menos até de manhã a polícia poderia acompanhar meu pai, já que ele teria mesmo que prestar mais depoimentos e depois buscar o corpo. Também recebi a indicação de conversar com o delegado de plantão. Ele disse que ia designar um policial para acompanhar meu pai até o meio dia.
Para mim, como irmão mais velho, me restou apenas ficar maluco cuidando de toda a burocracia de funerária e buscar dinheiro para pagar todas as despesas dos mortos (atestados, caixão, lápide, coveiro, flores etc.). Passei em casa para tomar um banho antes e aliviar um pouco a ressaca que começava a ficar forte.
Sentado na minha cama encontrei o homem a quem pertencia o documento de identidade. Ele tinha realmente os meus olhos grandes, nariz redondo, boca fina e sombrancelha grossa. O formato do rosto também era igual, quadrado com testa larga. A cor da sua pele apenas era diferente, muito branca e com sardas, diferente de mim que sou pardo.
- Quem é você? – perguntei assustado.
- Sou seu irmão mais velho.
- Foi você que matou minha mãe?
- Escuta, eu não tinha a intenção de te conhecer, mas aquela mulher disse que você perguntou pelo meu outro nome hoje. Eu imaginei que você deve ter encontrado meu documento falso que perdi.
- Responde! – gritei.
- Sim, fui eu que matei – ele tirou da cintura um revólver.
- Por quê?
- Antes de você nascer, uns quatro anos antes, ela me deixou na rua. Eu era bebê de poucos meses. Isso foi em outro estado, ninguém conhecia ela lá. Apenas deixou um bilhete pedindo que eu fosse registrado como Ciro Valdez, o nome de um ator de novela que ela achava bonito na época. Dá para acreditar? Naquele dia eu peguei uma pneumonia e fiquei doente meses segundo o que me contaram depois. No orfanato que fiquei também peguei um monte de doença, caxumba, sarampo, diarréia, sempre sarava e pegava outra, nunca fui adotado e sei que foi por isso que nunca fui adotado. Por ser pobre e sozinho nunca consegui estudar direito também. Acabei indo preso por roubar uma loja e para não ser dedo duro mofei cinco anos na cadeia. Decidi que a única razão da minha vida fodida era encontrar meus pais e matar os dois. Meu pai, infelizmente, já cuidou disso, ele morreu quando eu tinha cinco anos, mas pelo menos foi atropelado. E hoje eu matei nossa mãe.
- Você vai me matar também?
- Não, não sei ainda. Eu não tinha a intenção nem de te ver, mas você tinha que achar meu documento. Eu fiz questão de trocar de nome quando fiz 18 anos, mas não sei porque motivo escolhi a porra do nome que a nossa mãe me deu para fazer o documento falso. Se acharem ele vai ficar mais fácil me encontrar.
- Eu já entreguei para a polícia, seu bosta! – a raiva tinha voltado.
- Calma, irmão. Assim vou ter que te matar também, sinto muito.
- Então faz isso logo! Sabe que eu quis te conhecer quando encontrei sua foto na rua? Pensei até tomar uma cerveja junto com você, contar como é a merda da minha vida. Que palhaçada! Antes você tivesse morrido de pneumonia!
- Foi nisso que eu pensei hoje, mano, quando matei a mãe.
- Cara, você pensa que é o coitadinho? Pode ter sofrido mais que a gente, mas todo mundo aqui nessa família tem uma vida difícil.
- Cala a boca playboy! – disse chorando e apontando a arma para mim – Eu só queria saber porque ela me abandonou. Sabe o que ela disse? Que era muito nova, pobre, burra e tinha medo dos pais. Eu percebi sim que ela era uma coitada, mas não tinha volta. Tinha que matar. No fundo eu sei que minha vida vai piorar agora, mas eu não tô nem aí. Eu não era para ter nascido mesmo.
Levei uma coronhada na cabeça e desmaei. Nunca mais vi meu irmão e também achei melhor não contar para a polícia o que aconteceu. Mas pedi o documento de identidade de volta. Até hoje carrego ele no bolso.
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Um comentário:
Parabéns meu escritor preferido!
Seu texto ficou maravilhoso!
E não se preocupe, vou fazer muita propaganda que é pra vc não reclamar que só eu faço comentários pra vc!
Te amo!
Sempre sua...
Shirley
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