segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Espelhos que se entrecruzam



No começo de outubro de 2004, você deve ter visto alguma notícia na TV, internet, rádio ou jornal a respeito da possibilidade de o Universo ter a forma de uma bola de futebol. Toda essa discussão vem de uma pesquisa da radiação de microondas cósmicas, isto é, a radiação resultante do Big Bang (explosão que teria dado origem a tudo), e esse estudo tem mostrado que o Universo pode ser finito e ter o desenho de um dodecaedro, uma figura geométrica sólida com doze faces e semelhante à bola do esporte mais popular do mundo. Pronto, apareceu a manchete que todo o editor de esportes pedia para Deus: “O Universo inteiro é uma grande bola de futebol”.

Fiquei sabendo também que Platão na Grécia Antiga e Leonardo da Vinci no Renascimento afirmavam a mesma coisa, o cosmos teria o formato de um dodecaedro. Porém, o que mais me interessou foi outra coisa: as faces desse Universo geométrico podem ser como espelhos. Segundo essa teoria, se você pudesse viajar por todo o Universo, de ponta a ponta, ao final retornaria pela face oposta à que "saiu". É como uma imensa sala de espelhos, eu olho para esquerda, direita, frente ou atrás e vejo a mesma coisa. Uma vez que o Universo não seria infinito, então todas as imagens observadas seriam reflexos da mesma sala onde reside o observador.

Desculpe se fundi sua cuca, caro leitor. Porém, tive uma boa razão para fazer isso – a literatura também se serve de toda essa abstração e imaginação da astrofísica. Veja, por exemplo, Poe e Borges com suas histórias que se assemelham a um jogo de xadrez, a uma operação lógica. E mais relacionado a essa teoria do “Universo espelhado” existe um conto excelente do italiano nascido em Cuba por acaso, Italo Calvino (1923-1985), “Numa rede de linhas que se entrecruzam”, uma parte do livro “Se um viajante numa noite de inverno” (1979).

“Numa rede de linhas que se entrecruzam” é um dos maravilhosos romances propositalmente inacabados que Calvino espalha pelo seu livro. Conta a história de um homem de negócios obcecado por espelhos, não por vaidade, mas porque encontra na geometria dos reflexos a própria lógica da vida. Ele observa os desenhos formados por caleidoscópios em busca de procedimentos a serem seguidos, decisões práticas e previsões arriscadas.

Cita filósofos e pensadores que também compararam os padrões das imagens refletidas com a existência, como Plotino (205-270): “a alma é um espelho que cria as coisas materiais refletindo as idéias de uma razão superior”. Fascina-se com as máquinas catóptricas do século XVII, pequenos teatros de vários tipos em que se vê uma figura multiplicar-se segundo a variação do ângulo formado pelos espelhos. Transformam “um galho em floresta, um soldadinho de chumbo em exército, um livrinho em biblioteca”.

Ele constrói um império financeiro seguindo o mesmo princípio dos caleidoscópios e das máquinas catóptricas, multiplicando como num jogo de espelhos as sociedades sem capital, inflando os créditos, fazendo sumir os passivos desastrosos no ângulo morto das perspectivas ilusórias. Jamais pensava diretamente no dinheiro, nos negócios, nos lucros, mas apenas nos “ângulos de refração que podem formar-se entre superfícies brilhantes com inclinações diferentes”. Porém, obtém tanto poder que se vê ameaçado por seqüestros, tanto pelas quadrilhas especializadas como pelos seus sócios e concorrentes no mundo das finanças. A saída que encontra é o mesmo padrão dos jogos de espelhos, reproduziu sua presença, saídas e retornos, encomendou cinco Mercedes iguais a sua para despistar a todos. Assim como criou falsas empresas, falsas reuniões, falsas amantes, e depois até falsos seqüestros e falsos resgates.

Maravilhado com tratados de ciências ocultas e anátemas dos inquisitores a respeito do poder dos espelhos, o homem de negócios sonha: “De espelho em espelho – acontece-me às vezes sonhar – a totalidade das coisas, o Universo inteiro, a sapiência divina poderia concentrar enfim seus raios luminosos num único. Ou talvez o conhecimento do todo esteja sepultado na alma e um sistema de espelhos que multiplicasse minha imagem até o infinito e restituísse sua essência numa imagem única me revelasse a alma do todo que se esconde na minha.”

Hoje a própria tecnologia diz que realmente existe a probabilidade de todo o cosmos ser uma incomensurável sala de espelhos. É como se as artes, a filosofia e a ciência chegassem ao mesmo dilema: o que é o real?, ou pior, como diferenciar o real de suas imagens refletidas? Na literatura, o personagem de Calvino acaba se perdendo nas previsões e manipulações criadas por ele nos jogos de espelhos, não consegue antever todas as hipóteses e reflexos da vida.

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