terça-feira, 20 de março de 2007

Boneco de si mesmo


Hoje é o terceiro dia que passo com o Serginho. Sem dúvida ele é uma pessoa comum. Gosta de comer fritura logo quando acorda, arrota em público, fala alto onde quer que esteja, toma pinga ao invés de água quando sente sede, canta qualquer mulher que se mexa (senão tá morta é o suficiente, ele diz), gosta de ouvir os clássicos brega dos puteiros até rachar os ouvidos e odeia futebol.
Com uma barriga protuberante e a calvice hereditária da família ele vai trabalhar todo dia às 9 da manhã como caixa em um banco. É a profissão que ele odeia por 12 anos e que me arranjou quando cheguei anteontem na sua casa sem um puto no bolso. Só com um diploma de adevogado que, além de alegrar minha mãe, hoje só serve para limpar a bunda .
Meu tio me diz tudo na lata, que eu vou achar o trabalho uma merda e ter vontade de xingar sem parar cada velho surdo ou ignorante que aparecer no meu guichê (vão ser muitos, ele diz), mas eu acho isso ótimo. O tio não passa a mão na cabeça, dá logo um safanão. E diz o que eu considero essencial: que eu vou ganhar dinheiro e depois do expediente vou poder mandar qualquer um se danar.
– Inclusive a chata da minha irmã. Diz para ela que você não é mais um nenezinho que pede dinheiro. Agora você vai é pagar um monte de cerveja para seu tio!
O dia de treinamento começa comigo sentado ao lado do meu tio, só olhando ele trabalhar. Realmente é tedioso como ele disse. Não tanto por atender chatos, eles nem são tantos assim, o ruim é repetir um milhão de vezes as coisas. Isso transforma ele em um anormal, sério e calmo, que conta as notas surradas que recebe, digita na calculadora sem olhar, checa cada assinatura, separa as moedas por valor, procura saber se cada conta está dentro da validade e não tem pena de enfiar uma multa goela baixo dos fodidos que pagam bem depois do prazo.
- Não é do seu tempo e você é muito ignorante para ter visto, mas o que eu faço aqui é ventriloquismo, como naqueles programas antigos de humor. Aqui dentro você tem que ser o boneco que conversa com o público, só que ao contrário, bonzinho e esforçado. Lá fora é que você mostra sua verdadeira voz, a podre.
Essa é a lição principal que ele disse que eu precisava aprender. A segunda é não fazer cagada perto do chefe. Com esses ensinamentos de imensa sabedoria é claro que já comecei no dia seguinte em um alto posto. Fui atender os débeis mentais que não sabem usar caixas eletrônicos.
Nessa função enobrecedora aprendi, por exemplo, que preciso valorizar cada pessoa desse mundo como indivíduos insubstituíveis. Pois quem aceitaria substituir essas bestas? Me alertaram que eu ia ver tudo aqui, gente que vem para o banco sem lembrar a senha, cara que tenta pagar contas com moeda, velho que não concorda com o extrato e acha que a culpa é sua e vários que não conseguem digitar os dados a tempo na máquina. Mas o caso mais fantástico, que ninguém no banco tinha visto, aconteceu logo comigo.
- Senhor, esse cartão é de papel e nem é deste banco. É de um chaveiro. Não tem como funcionar – rindo muito por dentro.
- Mas aqui diz para inserir o cartão, eu tou com pressa – disse rispidamente.
- Bom, usando esse cartão o senhor vai passar mil anos aí e não vai resolver nada.
- Seu moleque! Isso é jeito de falar com cliente?!
- Não vou tolerar este tipo de agressão, ainda mais levando em conta que meu tio é ventríloquo – respondi sério.
É claro que o coitado não entendeu nada e nem eu sei porque respondi isso de pronto, mas serviu para ele sair do banco sem falar mais nada. Todo mundo riu na hora, mas o tonto aqui levou seu primeiro esporro.
Depois do expediente, meu tio me indicou um filme de um maluco chamado Señor Wences. Achei engraçado mesmo, apesar de não ter cor. Resolvi começar a fazer direito no próximo dia. Afinal, como meu tio diz, nosso ventriloquismo é superior porque é egoísta. Não fazemos ninguém rir, só a nós mesmos quando termina o dia.

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