A PM (Polícia Militar) deve treinar para matar ou não? Essa foi a pergunta inicial que o coronel Nilson Giraldi, 76 anos, fez a mim e a mais seis jornalistas que nesta semana conheceram e fizeram o atual treinamento de tiro da PM.
Foram dois dias de aulas em Bauru na sede do CPI-4 (Comando de Policiamento do Interior 4). Lá funciona o Centro de Treinamento na Preservação da Vida, local onde o coronel Giraldicomeçou a inventar há 30 anos um método de tiro que leva seu nome.
Há 12 anos a PM começou a adotar essa prática no Estado com a missão de tentar mudar um comportamento de décadas da corporação que matou milhares de bandidos, os próprios policiais e inocentes. “O disparo deve ser a última alternativa, o policial deve aprender o que é de fato a legítima defesa”, fala.
No começo parece contraditório que um treinamento de tiro possa facilitar a preservação da vida, mas Giraldi ensina que em um confronto armado há muitas possibilidades de erros que podem ser evitados com o condicionamento de boas práticas.
Novos alvos
Nosso treinamento começa com disparos em alvos, ou seja, aprender a atirar. A mudança de paradigma no método Giraldi inicia aí – os alvos não simulam silhuetas humanas, como o antigo alvo Colt que pontuava mais os acertos na cabeça e no coração. O alvo que utilizamos é apenas um retângulo branco com outro retângulo cinza menor dentro. A meta procurada é apenas acertar o retângulo cinza o mais próximo possível de seu centro.
A segunda fase do treinamento simula uma área de confronto armado com paredes, muros e cômodos com várias curvas. Os alvos de papelão agora representam pessoas – os bandidos armados ou não, inocentes na área de tiro e reféns sob ameaça de bandidos.
A ação começa com a palavra “perigo”gritada pelo instrutor. Somos orientados a ficar com o dedo fora do gatilho em todo o percurso. Para Giraldi o policial que mantém sempre o dedo no gatilho acaba atirando no que não deve. A pista de alvos mostra que isso é verdade, de surpresa aparecem alvos móveis, como o de um morador da fictícia área de confronto ou mesmo um jornalista cobrindo a ocorrência. Vários colegas 'mataram' inocentes.
Meu instrutor, o 2o. sargento Carlos Cesar Rodrigues, 40, acompanha minha passagem de perto e pára a instrução em cada erro que cometo. Cada falha é explicada e eu tenho a chance de repetir de uma forma correta quantas vezes foram necessárias. “O policial erra aqui dentro para não falhar numa situação real”, diz.
Outra característica do treinamento é uma espécie de teatro da negociação. Em cada alvo de papelão que eu encontro o instrutor simula uma voz, por exemplo, se o alvo mostra um bandido apontando uma arma para o refém o instrutor inventa uma fala do bandido para colocar mais tensão e realismo. Cabe ao aluno iniciar uma negociação na hora, pedir calma com educação e resolver a situação sem disparos, já que a vida do refém está em jogo.
Os tiros contra bandidos devem ser feitos apenas quando estes estão sozinhos e apontam a arma na direção do aluno. Para Giraldi um disparo de arma de fogo dentro da legalidade deve obedecer quatro princípios: necessidade; ser oportuno; proporcionalidade (2 tiros por vez); e qualidade. “O policial que obedece essas regras não é condenado por tribunais”, afirma.
Para o comandante do CPI-4, coronel José Guerra Júnior, o método de Tiro Defensivo de Preservação da Vida tem seu segredo na simplicidade e facilidade de execução. Hoje as unidades da PM trocam pela internet as figuras dos alvos e suas orientações, quem recebe só precisa imprimir e colar em uma placa de papelão. “Uma vez por ano os policiais voltam para o quartel e recebem todo esse treinamento de novo, o preparo mais humano se traduz em mais eficácia”, fala Guerra.
Segundo Giraldi a maior dificuldade que seu método enfrenta é vencer os velhos hábitos da PM. Ele explica que a instituição foi criada com uma doutrina semelhante a do Exército, que prega a eliminação do inimigo, e que durante a ditadura militar foi aplicada por alguns setores da polícia.
A nova doutrina defendida por Giraldi já tem resultado práticos. Segundo ele, antes de seu método a cada dez ocorrências envolvendo reféns no Estado de São Paulo em média nove terminavam com mortes. Hoje esse número está próximo do zero.
O método Giraldi já é adotado em maior ou menor grau em todos os Estados brasileiros, com exceção do Rio de Janeiro. O método já foi oficialmente reconhecido pela ONU, Comitê Internacional da Cruz Vermelha, dos Direitos Humanos e do Policiamento Comunitário.
Fim das pescarias
Nascido em Lins, o coronel conta que serviu o Exército com 18 anos e logo em seguida ingressou na Força Pública, antigo nome da PM. Começou sua carreira como soldado. Ele não tinha outros parentes na polícia. “Na época era um desprestígio ser policial, entrei sem minha família saber, mas precisava, não tinha pai e era pobre. Só com o tempo tive o reconhecimento deles”, fala.
Seu alistamento foi na cidade de São Paulo. Por dezoito anos serviu em São Paulo e depois em Bauru e Jaú. Foram 35 anos atuando e há 25 anos ele está na reserva. Giraldi também foi competidor de tiro esportivo e conseguiu 45 títulos brasileiros de tiro, oito internacionais e três recordes mundiais.
Ele conta que a iniciativa de criar um novo método de treinamento para a polícia surgiu ainda na ativa, quando percebia que quase todas as tragédias envolvendo ocorrências policiais poderiam ter sido evitadas. “Em quase todo mundo as forças policiais importavam a instrução de tiro das Forças Armadas, o que de forma alguma é correto para a polícia que serve a comunidade”, diz.
Um amigo seu, o tenente José Alfredo Cintra, na época com 21 anos, participando de um confronto armado em Bauru com dois bandidos, foi atingido no coração pelo disparo de um agressor e antes de morrer ele conseguiu atingi-lo e matá-lo. O outro fugiu.
A tropa consolou Giraldi dizendo que pelo menos o tenente morreu, mas levou um com ele. “Respondi que era melhor os dois estarem vivos”, fala. Para ele sempre quando há uma vítima, seja qual for o lado, a polícia perde.
Na elaboração do método ele diz ter estudado as neurociências para aprender como o cérebro humano funciona diante da morte. Foram também entrevistados policiais que enfrentaram confrontos armados, tanto os na ativa como aqueles que estavam presos por usarem incorretamente suas armas. Além disso, ocorrências que terminaram em mortes de policiais foram estudadas para conhecer suas falhas.
Nessa fase ele lembra que sua experiência de exímio atirador foi deixada de lado. Ele explica que uma das razões para tantas mortes no confronto policial foi transformá-lo em uma simples competição de quem atira melhor.
As idéias de Giraldi começaram a ser aplicadas em São Paulo logo após o caso da Favela Naval em Diadema. Nos dias 3, 5 e 7 de março de 1997 moradores do local foram espancados e mortos por policiais militares. Na época o Jornal Nacional mostrou em rede nacional o soldado Otávio Lourenço Gambra, o Rambo, atirando em Silvio Calixto de Lemos já caído depois de apanhar.
O caso ganhou repercussão mundial e a força policial de São Paulo foi pressionada a mudar de conduta. Giraldi no mesmo ano foi convocado por seu estudo contra a violência para ajudar a PM e aos poucos ele foi sendo usado pela polícia. Hoje ele viaja pelo Brasil inteiro e diversos países para mostrar suas idéias. “Com isso acabei perdendo minha aposentadoria e não tenho mais sossegado para pescar”, brinca.
Sobre a morte do mecânico Jorge Luiz Lourenço, 22 anos, alvejado no dia 5 de abril de 2007 por policiais militares após furar um bloqueio policial, Giraldi não comenta, diz que só avalia após ser julgado. Mas na atuação policial em geral ele afirma que o policial tem que evitar a precipitação e a valentia perigosa. “Essas condutas em excesso são uma loteria, podem transformar o policial num herói, defunto ou presidiário”, fala.
Para ele o personagem do capitão Nascimento mostrado no filme “Tropa de Elite” é um péssimo exemplo de policial. “O filme só mostra duas policias, corrupta ou violenta. Isso não existe felizmente, os erros são exceções”, fala.
Giraldi também condena a população por muitas vezes manifestar a preferência por uma polícia violenta que mate, mas atribui isso a impunidade, já que apenas 1% dos autores de homicídio, estupro e roubo cumprem pena.
Ele é casado há 45 anos com Ivone, tem três filhas e vários netos. Ele agradece a mulher por sua compreensão e ajuda no seu trabalho. As mãos dos alvos que simulam pessoas do métodoGiraldi foram feitos por sua mulher, usando como molde a mão feminina. O símbolo do método, que é uma pomba em um triângulo, foi criado por sua filha caçula, que é designer.
O tiro
Nunca tinha encostado a mão em um revólver. Comecei logo com um calibre 38 de cano longo. O peso da arma impressiona, além disso somos obrigados a usar colete a prova de balas, óculos de proteção, abafadores no ouvido e um cinto para carregar o coldre.
A sensação na área de tiro é de apreensão e muito calor. Distante cerca de quatro metros do alvo parece que é fácil acertar. O primeiro tiro acerta o alvo, mas muito distante do centro. Controlar a empunhadura firme da arma é muito difícil. As duas mãos precisam segurar forte o cabo do revólver. E também somos orientados a fazer tudo corretamente, ou seja, o saque no coldre tem que ser sem olhar.
O tranco da arma não chegou a me impressionar. Os instrutores explicaram que armas com um calibre maior chegam a derrubar, mas um revólver 38 se for segurado corretamente não é tão forte.
Durante o tiro outra preocupação é encontrar a alça de mira no alto do cano do revólver e alinha-la com o alvo. Com calor, tensão e a preocupação com tantos detalhes a maioria dos jornalistas só começou a atirar num nível razoavelmente aceitável só no décimo tiro para a frente.