quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Carne enlatada e luta de classes

Montagem da Companhia do Latão

“A Santa Joana dos Matadouros”, peça do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1898-1956), é ambientada em matadouros da Chicago da década de 1920. A escolha desses locais sangrentos não foi por acaso, pois a obra fala da grave crise do capitalismo causada pela especulação desenfreada na Bolsa de Valores em 1929. No texto de Brecht, escrito entre 1929 e 1931, a carne para abate é a dos trabalhadores das indústrias de carne, humilhados com salários de fome ou vítimas do desemprego em massa, e as facas afiadas são dos magnatas dessa indústria e dos especuladores financeiros. Qualquer semelhança com a crise de 2009 e o especulador Bernard Madoff não é mera coincidência.

Muito influenciado pelo marxismo, Brecht escreveu várias peças políticas que despertaram a consciência do espectador para os problemas sociais e políticos de seu tempo. “Santa Joana” fala do ciclo de prosperidade, superprodução, desemprego, quebras e nova concentração do capital que o mundo viu no início do século XX. Na peça, o rei dos frigoríficos, Pedro Paulo Bocarra (Pierpont Mauler, no original alemão), é um ganancioso explorador dos trabalhadores e um grande trapaceador no mercado de carnes enlatadas, destruindo todos os seus concorrentes.

Mas a grande personagem da obra é Joana Dark, tenente dos Boinas Pretas, uma espécie de Exército da Salvação que leva a palavra de Deus e um prato de sopa rala para os desempregados. Joana é a heroína ingênua que desce às profundezas da miséria, do lucro, da fé interesseira e da violência, tentando entender e acabar com as injustiças dos homens. Através da idealista Joana, o texto vai desmascarando com muito sarcasmo a exploração econômica dos industriais e especuladores, a mistificação religiosa dos falsos pastores e até as contradições dos próprios explorados, já que estes demonstram muita desunião e cobiça.

A forma da escrita é outra grande qualidade da peça, Brecht fez paródia com clássicos da literatura alemã, como Goethe e Hölderlin, e usou os vários estilos verbais das classes que aborda: a retórica dos agitadores de porta de fábrica, a terminologia da especulação financeira, a ladainha e os hinos do Protestantismo e a miséria operária. Além disso, o texto é feito com versos sem vírgulas no final das linhas, uma estratégia que cria pausas propositais e que às vezes separa palavras que logicamente estariam juntas ou interrompe um raciocínio. É um suspense no final dos versos que se desfaz e refaz quase que linha a linha.

Brecht viu a Primeira Guerra Mundial, viu a perseguição ao movimento operário, a fome dos anos 20 e a ascensão de Hitler, anos terríveis na história da humanidade que o forçaram a fugir da Alemanha, ele era um homem que questionava demais, uma ameaça para qualquer regime totalitário. Viveu em vários países da Europa e nos EUA, só voltou para sua terra em 1949, para a Berlim Oriental, onde fundou o Berliner Ensemble, companhia teatral que dirigiu até sua morte. Foi um dos maiores autores e diretores de teatro do século passado, criou peças épicas definidas pela sua função social e política.

“Ópera dos Três Vinténs”, “O Círculo de Giz Caucasiano”, “Galileu Galilei” e “Mãe Coragem” são outras grandes obras suas. “A Santa Joana dos Matadouros” tem praticamente uma função “didática”, pois revela alguns dos níveis de uma luta de classes. Joana Dark, depois de conhecer as profundezas dos matadouros de Chicago, do edifício da Bolsa de Valores e do quartel dos soldados de Deus, ensina:

“Os de baixo estão presos embaixo
Para que os de cima permaneçam em cima
E a baixeza destes é sem limite
E ainda que eles melhorassem não melhorava
Nada, porque é sem paralelo
O sistema que organizaram:
Exploração e desordem, bestial e portanto
Incompreensível.”

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