No ano de 2010, no mês de setembro, pouco antes do primeiro turno das eleições presidenciais, começaram a aparecer nos principais jornais e revistas de circulação nacional denúncias contra a ex-ministra da Casa Civil Erenice Guerra, ex-assessora da candidata do PT à Presidência da República, Dilma Rousseff. O caso teve muitas situações descritas na teoria social do escândalo de John B. Thompson, como os aparecimentos de negações e transgressões de segunda ordem.
Esse trabalho primeiro vai explicar as denúncias contra Erenice Guerra, relatar as teorias de Thompson e associar esse caso brasileiro com as idéias do autor inglês.
Laços de família em Brasília
Erenice Guerra foi o braço direito da hoje presidente eleita Dilma Rousseff durante o período em que esta foi ministra. Mas as duas se conheceram apenas em 2002, quando Dilma foi integrar o grupo de transição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na área de energia.
Dilma havia sido Secretaria de Minas e Energia do governo gaúcho de Olívio Dutra e saído recentemente do PDT para o PT. Já Erenice integrava a equipe de advogados da liderança do PT na Câmara. As duas acabaram se conhecendo no núcleo de energia da transição de Lula porque Erenice tinha também um passado na Eletronorte.
O presidente Lula acabou indicando Dilma para ministra das Minas e Energia e Dilma depois indicou Erenice para o cargo de consultora jurídica do ministério. As duas permaneceram quase oito anos trabalhando juntas. Quando Dilma foi para a Casa Civil em junho de 2005, Erenice foi junto como sua assessora.
Dilma ficou nesse cargo até março de 2010, quando se desligou para a campanha à Presidência. Em seu lugar foi escolhida a então secretária-executiva do ministério: Erenice Guerra.
Mas o período de Erenice como ministra foi curto, ela não resistiu às denúncias de tráfico de influência envolvendo ela e seus parentes.
O caso envolveu os três irmãos de Erenice: Maria Euriza Alves Carvalho, Antônio Eudacy Alves Carvalho e José Euricélio Carvalho, que tiveram cargos públicos federais comissionados, mas deixaram os postos em 2008, após o Supremo Tribunal Federal proibir oficialmente o nepotismo. Além disso, um dos filhos da ministra, Israel Guerra, também foi envolvido nas denúncias.
Uma das principais denúncias é de que Israel Guerra teria feito lobby para que a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) liberasse a concessão dos vôos da MTA Linhas Aéreas, que fora suspensa. Mais tarde, a MTA fechou contrato de R$ 19,6 milhões com os Correios, sem licitação, para transporte de carga.
O lobby teria sido feito por meio da empresa Capital Assessoria e Consultoria, na qual são sócios, além de Israel, Vinicius Castro, funcionário da Casa Civil, e Stevan Knezevic, servidor da Anac, então lotado na Presidência. Em troca da intermediação, Israel cobraria uma “taxa de sucesso” (propina) de 6% sobre os contratos, e a própria Erenice teria cobrado o empresário Fábio Baracat, ex-sócio da MTA. A prática teria começado em 2009, ainda com Dilma na Casa Civil, mas supostamente sem o conhecimento da então ministra.
Depois, foi denunciado que como ministra Erenice passou a ter ingerência nos Correios, órgão que boa parte da mídia costuma associar com corrupção em seu alto escalão. O presidente dos Correios, David José de Matos, e a diretoria da estatal teriam aprovado um contrato superfaturado em R$ 2,8 milhões para favorecer outra empresa de carga aérea. A contratação, feita pela nova direção da estatal nomeada pela então ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, manobrou para ressuscitar, em agosto, uma licitação que havia sido cancelada três meses antes pelo comando demitido da estatal.
Os documentos obtidos e divulgados pelo jornal “O Estado de S.Paulo” mostram que a nova diretoria, empossada no dia 2 de agosto, entregou para a Total Linhas Aéreas um contrato de R$ 44,3 milhões. E concluiu o negócio em apenas duas semanas.
Os outros casos que a mídia noticiou envolveram fatos mais remotos ligados a Erenice e/ou seus parentes. Por exemplo, Em 1997, Erenice Guerra teria usado um “laranja” para abrir a empresa de investigação particular Conservadora Asa Imperial em nome de seu filho Israel Guerra. A “laranja” seria a professora desempregada Geralda Amorim de Oliveira, que confirmou ter fornecido documentos para a abertura da empresa. Geralda Amorim de Oliveira é irmã de uma amiga antiga de Erenice.
Em outro caso, segundo uma auditoria da CGU (Controladoria-Geral da União), José Euricélio de Carvalho seria responsável pelo desvio de R$ 5,8 milhões da editora da UnB (Universidade de Brasília). O desvio, parte de um esquema que teria deixado um prejuízo de R$ 10 milhões na editora, incluiria pagamentos para Carvalho e Israel Guerra.
Reações
A onda de denúncias contra Erenice e seus parentes começou em 11 de setembro de 2010. A revista “Veja” revelou primeiro que o filho da ministra, Israel Guerra, integrava um esquema de lobby Anac/Correios com o objetivo de intermediar contratos e benefícios com o governo federal. Com isso, outras revistas e TV, rádio, jornais e internet passaram a repercutir as acusações e foram trazendo fatos novos dessas e outras investigações. Praticamente por um mês inteiro essas denúncias foram o principal alvo do noticiário.
Após as denúncias da “Veja”, Erenice colocou seus sigilos fiscal, bancário e telefônico e os de sua família à disposição das autoridades competentes, além de negar tudo.
“Sinto-me atacada em minha honra pessoal e ultrajada pelas mentiras publicadas sem a menor base em provas ou em sustentação na verdade dos fatos, cabendo-me tomar medidas judiciais para a reparação necessária. E assim o farei. Não permitirei que a revista 'Veja', contumaz no enxovalho da honra alheia, o faça comigo sem que seja acionada tanto por danos morais quanto para que me garanta o direito de resposta”, disse em nota.
Ela ainda lamentou que o processo eleitoral, “no qual a citada revista está envolvida da forma mais virulenta e menos ética possível, propicie esse tipo de comportamento e a utilização de expediente como esse, em que se publica ataque à honra alheia travestido de material jornalístico sem que se veicule a resposta dos ofendidos”.
E também se defendeu na nota chamando o candidato da oposição à Presidência José Serra de “candidato aético e já derrotado, em tentativa desesperada da criação de um 'fato novo' que anime aqueles a quem o povo brasileiro tem rejeitado”. Ou seja, ela chegou a afirmar que as denúncias na mídia eram orquestração da oposição.
A então ministra também pediu à Comissão de Ética Pública da Presidência da República a imediata instauração de procedimento para apurar a sua conduta em relação às acusações.
Mas Erenice caiu rápido. No dia 16 de setembro, o jornal “Folha de S.Paulo” noticiou que uma empresa de Campina, EDRB do Brasil Ltda., confirmou outro lobby operaria dentro da Casa Civil da Presidência da República e acusou de novo o filho da ministra Erenice Guerra de cobrar dinheiro em 2009 para obter liberação de empréstimo no BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). No mesmo dia da matéria Erenice foi exonerada pelo presidente Lula.
A mídia divulgou que o fato de haver muitos familiares dela envolvidos em caso de lobby passando pela Casa Civil, tornou sua situação “insustentável” perante o presidente. Pesou ainda contra Erenice a publicação da nota atacando o candidato tucano José Serra, sem consultar nem mesmo o presidente sobre o conteúdo do documento.
Em sua carta de demissão, Erenice Guerra afirmou que precisa de “paz e tempo” para se defender das acusações de lobby. Esses são alguns trechos:
“Senhor presidente, por ter formação cristã não desejo nem para o pior dos meus inimigos que ele venha a passar por uma campanha de desqualificação como a que se desencadeou contra mim e minha família. As paixões eleitorais não podem justificar esse vale-tudo.
Preciso agora de paz e tempo para defender a mim e minha família fazendo com que a verdade prevaleça, o que se torna incompatível com a carga de trabalho que tenho a honra de desempenhar na Casa Civil.”
Até o momento em que este trabalho foi escrito a última informação sobre o caso Erenice, dia 16 de novembro, é que a Casa Civil da Presidência da República prorrogou por mais 20 dias a sindicância instaurada em setembro para investigar suposta prática de influência no ministério. O prazo inicial da sindicância era de 30 dias. Acabou sendo prorrogada pelo mesmo período, impedindo que o resultado e o teor das investigações internas fosse conhecido antes da realização do segundo turno das eleições presidenciais. A Polícia Federal também prorrogou seu prazo de investigação.
A teoria social do escândalo
Para Thompson, no final do século 20 o escândalo assumiu uma importância na vida pública que ultrapassa a importância que ele possuiu para as gerações anteriores. Tanto que o principal marqueteiro da campanha de Dilma Rousseff, João Santana, admitiu em entrevista ao jornal “Folha de S.Paulo” do dia 6 de novembro que o caso Erenice provocou o 2º turno.
“O caso Erenice foi o mais decisivo porque atuou, negativamente, de forma dupla: reacendeu a lembrança do mensalão e implodiu, temporariamente, a moldura mais simbólica que estávamos construindo da competência de Dilma, no caso a Casa Civil”, disse João Santana.
Thompson ressalta que essa força do escândalo hoje está ligada a vários fatores, uma série de desenvolvimentos que possuem longa história e que tiveram profundo e duradouro impacto na vida social e política.
O principal apontado é o caráter de mudança dos meios de comunicação, que transformaram a natureza da visibilidade e alteraram as relações entre a vida pública e privada. “Nessa era moderna de visibilidade mediática, o escândalo é um risco que ameaça constantemente tragar os indivíduos cujas vidas se tornaram o foco da atenção pública”, diz o autor.
Há que se apontar também que hoje os escândalos também não são mais apenas tragédias pessoais – eles são também “lutas sociais que são travadas no campo simbólico”, no vaivém de afirmações e contra-afirmações, de revelações, alegações e negativas. E o escândalo é um fenômeno que acontece predominantemente no espaço público.
Nessa teoria social do escândalo que cria, também destaca que as transformações sociais do período pós 2a Guerra Mundial foram gradualmente enfraquecendo a política ideológica dos partidos tradicionais com base nas classes.
Para Thompson isso criou as condições para uma “política de confiança”, isto é, muitas pessoas olham cada vez mais para a credibilidade e a confiança dos líderes políticos ou aspirantes a líderes, para seu caráter (ou falta dele), como um meio de avaliar sua adequação, ou não, ao exercício de um cargo. A ideologia política e programas partidários muitas vezes são deixados de lado nesse contexto. Nisso, o escândalo político assume um novo papel poderoso e auto-reforçador, como teste de credibilidade.
Poderes ameaçados
O que está em jogo não é apenas o orgulho do acusado em um escândalo, mas também seu poder, sua capacidade de fazer uso da reputação ou bom nome a fim de exigir respeito de outros e alcançar interesses e objetivos. O caso Erenice conseguiu diminuir o poder da ministra Erenice Guerra e da candidata Dilma Rousseff. Como já mostrado, com isso a primeira perdeu o emprego e a segunda perdeu eleitorado e foi para o segundo turno das eleições, que poucas semanas antes do escândalo liderava com folga.
O autor define escândalo como “ações ou acontecimentos que implicam certos tipos de transgressões que se tornam conhecidos de outros e que são suficientemente sérios para provocar uma resposta pública”. Normalmente são três os tipos principais de escândalos em nossa sociedade, que podem se misturar: má conduta nas relações sexuais; violação de regras das transações financeiras; e a corrupção no exercício do poder político.
E são dois os modelos de escândalos definidos por Thompson. No mais simples, uma ação de transgressão oculta é revelada publicamente, ou alega-se publicamente que ocorreu, e a revelação pública e/ou as alegações provocam manifestações públicas de desaprovação. No mais complexo, como o do caso Erenice, as revelações e alegações defrontam-se com negações e contra-alegações por parte dos indivíduos envolvidos, que por sua vez levam a investigações e revelações posteriores, dando origem a uma série de transgressões de segunda ordem. Muitas vezes as transgressões de segunda ordem podem assumir importância bem maior que a ofensa original.
Após as denúncias iniciais contra Erenice, ela se defendeu com várias negações e até colocou seus sigilos à disposição para investigação. Também alegou que as denúncias eram motivadas pela eleição e atacou o candidato da oposição. Novas investigações da mídia levaram a mais denúncias, algumas que reforçavam as acusações iniciais e outras de novos casos.
A situação de Erenice ficou insustentável porque praticamente todos os veículos de mídia traziam acusações contra ela e, talvez o pior, ela estava envolvida em denúncias em conjunto com parentes. Na sociedade brasileira o político ou gestor público que usa seu poder para beneficiar sua família é muito mal visto. As denúncias de tráfico de influência e propina ficaram muito mais fortes moralmente porque envolviam parentes.
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
DPVAT vai subir até 15%
Depois de um ano sem aumentos o preço do seguro obrigatório DPVAT no ano que vem vai subir até 15,04%. Ele é pago pelos donos de carros de passeio, táxis, motos, ônibus, micro-ônibus, caminhões e tratores.
A decisão foi do CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados). O seguro, que é pago junto com o IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores), para carros de passeio, por exemplo, vai passar de R$ 89,61 para R$ 96,63 e para motos, de R$ 254,16 para R$ 274,06.
Segundo o superintendente da Susep (Superintendência de Seguros Privados), órgão ligado ao Ministério da Fazenda, Paulo dos Santos, o reajuste do DPVAT está diretamente relacionado ao aumento no número de sinistros neste ano, em todas as categorias.
Fraudes/Quem administra o DPVAT, por imposição do CNSP, é a seguradora Líder-DPVAT, com sede no Rio.
Ontem por telefone, seu diretor presidente, Ricardo Xavier, confirmou que neste ano há realmente um grande aumento de sinistros.
Em 2008, foram pagos R$ 1,9 bilhão em indenizações por acidentes, invalidez ou mortes. Ano passado, foram R$ 2,244 bilhões. E neste ano, até novembro, foram 2,335 bilhões.
Ricardo afirma que hoje 60% dos sinistros são de motocicletas e explica isso devido a característica do transporte, mais exposto a acidentes, e principalmente ao grande número de fraudes. “Temos combatido muito isso, com apoio do Ministério Público e da polícia, mas mesmo assim pagamos em média mil indenizações por dia”, afirma.
O aumento do DPVAT pretende então “compensar” o que tem que se pagar a mais de indenizações neste ano. No final do ano passado a Susep fez várias mudanças na legislação que visavam minimizar fraudes, mas o efeito foi fraco. Foi criada até uma tabela para permitir o cálculo da indenização por invalidez permanente, em função da gravidade dos danos sofridos.
Muitas quadrilhas atuam apresentando atestados falsos de invalidez e óbito para receber o DPVAT, mas também há casos de pessoas que usam intermediários para contratar o DPVAT e acabam entrando em golpes. “Ter acesso ao DPVAT é fácil, não precisa usar intermediário , esse é elo de muitas fraudes”, ressalta Ricardo.
O telefone da seguradora Líder-DPVAT para dúvidas é 0800-022-12-04 e o site éwww.seguradoralider.com.br.
Valores/O seguro DPVAT (Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre ou por sua Carga a Pessoas Transportadas ou Não), é obrigatório por lei (6.194/74) e utilizado para indenizar vítimas de acidentes de trânsito causados por veículos motorizados que circulam por terra ou por asfalto.
Nos casos de morte, os herdeiros da vítima são indenizados em R$ 13,5 mil. Para invalidez, é de até R$ 13,5 mil e varia de acordo com a gravidade das sequelas. Em relação às despesas médicas, o valor reembolsado é de até R$ 2,7 mil.
Além dos valores do DPVAT é cobrado dos motoristas também a taxa de R$ 4,15 para cobrir o custo da emissão e da cobrança da apólice ou do bilhete de seguro. Além disso, há ainda a cobrança de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Quem deixar de pagar o DPVAT não poderá licenciar o veículo
Distorção: motos respondem apenas por 25% das contratações no total
Praga
“A fraude existe, infelizmente, de forma endêmica no DPVAT”,
Ricardo Xavier, diretor presidente da seguradora Líder-DPVAT, empresa que administra o seguro no país
Análise
Marcos Crivelaro,
consultor de finanças pessoais
Começo de ano exige cuidados
Janeiro e fevereiro está chegando, por isso é bom se programar para muitos gastos extras como impostos (IPVA e IPTU, sobre veículos e imóveis, respectivamente), matrícula e material escolar, seguro e o DPVAT.
No começo do ano, o cobertor é curto e muitas vezes não dá para pagar tudo à vista. Deve-se avaliar bem então quando o desconto vale a pena. Muitos impostos, como o IPVA, dão descontos para quem paga à vista. O IPVA em São Paulo em 2011 dará 3% de desconto. Se você tem o dinheiro disponível, aproveite o desconto.
Na compra de material escolar, o consumidor deve escolher entre dividir a compra em várias lojas, para pesquisar e conseguir preços melhores, ou concentrar as compras em uma loja só, quando, devido ao valor maior da compra, às vezes consegue-se uma condição melhor de pagamento. Vale pedir o desconto nesses casos.
Cadernos e outros produtos de papelaria com personagens de desenhos costumam ser mais caros, então os pais precisam controlar esses gastos e ter bom senso na escolha.
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
Governo fará corte de gastos e deve atrasar ainda mais o PAC
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, que já foi confirmado para continuar no cargo no governo Dilma, disse ontem no seminário Diálogos Capitais 2011-2014, no Rio de Janeiro, que o governo vai apertar o cinto. “A partir de 2011, vamos reduzir, por exemplo, gastos de custeio. O estado vai fazer um ajuste, diminuir subsídios e impedir a constituição de novos gastos. Esse é o desafio que nós temos, mas não é um desafio fácil”, disse Guido.
Gastos com custeio incluem, por exemplo, salários, serviços de terceiros e material de consumo dos órgãos públicos. O volume do ajuste ainda será definido pelo Ministério do Planejamento e pela Secretaria do Tesouro Nacional. O ministro da Fazenda adiantou que o corte de gastos atingirá todos os ministérios e poderá afetar inclusive o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
A redução dos gastos públicos é uma demanda antiga do setor produtivo porque deve ajudar a redução da Selic (taxa básica de juros brasileira), mas o corte de verbas do PAC pode tornar ainda mais lento as obras infraestrutura do país.
PAC lento/Segundo a ONG Contas Abertas, que analisou o último balanço do PAC divulgado em abril, apenas 13% dos empreendimentos previstos desde 2007 estão concluídos. No estado de São Paulo o percentual é ainda menor, 11,6%.
Ontem, o presidente Lula se antecipou à sucessora, Dilma Rousseff, e anunciou que o PAC sairá da Casa Civil e ficará sob responsabilidade do Planejamento no próximo governo. A futura ministra da pasta é Miriam Belchior, atual coordenadora do PAC. Semana passada ela já sinalizou que vai fechar o cofre. “É possível fazer mais com menos e é isso que nós vamos perseguir nos próximos quatro anos”, disse ela.
O PAC prevê obras importantes para São Paulo que não começaram ou caminham lentamente, como o Ferroanel, mais um terminal de passageiros no aeroporto de Guarulhos e obras de saneamento nos municípios. (Com Agência Brasil)
Ministro prevê muitas implicações com ações
Ontem no Rio, Guido Mantega fez uma grande análise de como a redução de gastos deve ajudar vários setores no país, apesar do possível prejuízo para o PAC. “Com a redução dos gastos públicos, principalmente de custeio, vamos gerar poupança pública e abrir espaço para a redução da taxa de juros. E, ao reduzir os juros, vamos estimular o setor privado. Esse corte de gastos abre espaço considerável para a redução dos juros, até porque o Brasil ainda está muito defasado em relação ao cenário internacional e isso causa problemas, inclusive, com o câmbio”, comentou.
Análise
Amir Khair,
mestre em finanças públicas pela FGV e consultor
Dinheiro retorna para população
Uma coisa é racionalizar os gastos com despesas e outra é cortar sem critérios. O Brasil tem um déficit social muito elevado, com graves problemas na educação, segurança, habitação, saneamento, entre outras áreas. Por isso, há sim necessidade de gastos de custeio no país para melhorar os serviços públicos.
O que pode e deve ser feito é cortar despesas desnecessárias de custeio. A futura ministra Miriam Belchior precisa fazer um pente fino nos gastos.
Sobre o PAC, o governo vem empenhando muitos gastos no orçamento para esse programa, que não consegue realizar pela demora na licitações públicas no país e necessidade de licenças ambientais. Então, apesar da grande divulgação do PAC o que efetivamente é feito ainda é pouco. O que deve ocorrer no ano que vem é que a divulgação deve ser mais moderada, mas as obras já em andamento vão continuar.
A redução de gastos do governo é importante porque é um dinheiro que volta para a população na melhora de serviços públicos. Hoje no Brasil o governo se financia emitindo títulos da dívida. E como a Selic está muito alta, em 10,75% ao ano, muitos bancos e investidores internacionais compram esses títulos para faturarem com os juros. Esses juros altos são bons apenas para o mercado financeiro.
O problema é que o juro alto prejudica a indústria nacional e custo caro para o governo: o Brasil paga 5,4% do PIB com essa Selic, sendo que países emergentes pagam em média só 1,8% do PIB.
Se o governo reduzir seus gastos sobrará mais dinheiro, então ele não necessitará mais de juros tão altos. O governo Dilma vai começar com bons indicadores econômicos, como de inflação e reservas, então não pode perder a chance de fazer isso. Um controle inflacionário pela liquidez, e não pelos juros.
Gastos com custeio incluem, por exemplo, salários, serviços de terceiros e material de consumo dos órgãos públicos. O volume do ajuste ainda será definido pelo Ministério do Planejamento e pela Secretaria do Tesouro Nacional. O ministro da Fazenda adiantou que o corte de gastos atingirá todos os ministérios e poderá afetar inclusive o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
A redução dos gastos públicos é uma demanda antiga do setor produtivo porque deve ajudar a redução da Selic (taxa básica de juros brasileira), mas o corte de verbas do PAC pode tornar ainda mais lento as obras infraestrutura do país.
PAC lento/Segundo a ONG Contas Abertas, que analisou o último balanço do PAC divulgado em abril, apenas 13% dos empreendimentos previstos desde 2007 estão concluídos. No estado de São Paulo o percentual é ainda menor, 11,6%.
Ontem, o presidente Lula se antecipou à sucessora, Dilma Rousseff, e anunciou que o PAC sairá da Casa Civil e ficará sob responsabilidade do Planejamento no próximo governo. A futura ministra da pasta é Miriam Belchior, atual coordenadora do PAC. Semana passada ela já sinalizou que vai fechar o cofre. “É possível fazer mais com menos e é isso que nós vamos perseguir nos próximos quatro anos”, disse ela.
O PAC prevê obras importantes para São Paulo que não começaram ou caminham lentamente, como o Ferroanel, mais um terminal de passageiros no aeroporto de Guarulhos e obras de saneamento nos municípios. (Com Agência Brasil)
Ministro prevê muitas implicações com ações
Ontem no Rio, Guido Mantega fez uma grande análise de como a redução de gastos deve ajudar vários setores no país, apesar do possível prejuízo para o PAC. “Com a redução dos gastos públicos, principalmente de custeio, vamos gerar poupança pública e abrir espaço para a redução da taxa de juros. E, ao reduzir os juros, vamos estimular o setor privado. Esse corte de gastos abre espaço considerável para a redução dos juros, até porque o Brasil ainda está muito defasado em relação ao cenário internacional e isso causa problemas, inclusive, com o câmbio”, comentou.
Análise
Amir Khair,
mestre em finanças públicas pela FGV e consultor
Dinheiro retorna para população
Uma coisa é racionalizar os gastos com despesas e outra é cortar sem critérios. O Brasil tem um déficit social muito elevado, com graves problemas na educação, segurança, habitação, saneamento, entre outras áreas. Por isso, há sim necessidade de gastos de custeio no país para melhorar os serviços públicos.
O que pode e deve ser feito é cortar despesas desnecessárias de custeio. A futura ministra Miriam Belchior precisa fazer um pente fino nos gastos.
Sobre o PAC, o governo vem empenhando muitos gastos no orçamento para esse programa, que não consegue realizar pela demora na licitações públicas no país e necessidade de licenças ambientais. Então, apesar da grande divulgação do PAC o que efetivamente é feito ainda é pouco. O que deve ocorrer no ano que vem é que a divulgação deve ser mais moderada, mas as obras já em andamento vão continuar.
A redução de gastos do governo é importante porque é um dinheiro que volta para a população na melhora de serviços públicos. Hoje no Brasil o governo se financia emitindo títulos da dívida. E como a Selic está muito alta, em 10,75% ao ano, muitos bancos e investidores internacionais compram esses títulos para faturarem com os juros. Esses juros altos são bons apenas para o mercado financeiro.
O problema é que o juro alto prejudica a indústria nacional e custo caro para o governo: o Brasil paga 5,4% do PIB com essa Selic, sendo que países emergentes pagam em média só 1,8% do PIB.
Se o governo reduzir seus gastos sobrará mais dinheiro, então ele não necessitará mais de juros tão altos. O governo Dilma vai começar com bons indicadores econômicos, como de inflação e reservas, então não pode perder a chance de fazer isso. Um controle inflacionário pela liquidez, e não pelos juros.
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Papel do Itaramaty deve crescer
A presidente eleita Dilma Rousseff ainda não anunciou oficialmente o nome de quem irá ocupar o Ministério das Relações Exteriores, mas a expectativa tanto entre diplomatas quanto na equipe de transição é a de que o escolhido seja o embaixador Antonio Patriota, que é próximo ao chanceler Celso Amorim e ocupa a segunda posição do Itamaraty, a Secretaria Geral.
O governo Dilma deve marcar o fim da chamada diplomacia presidencial, que teve início com Fernando Henrique Cardoso e, nos oito anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva, se fez ainda mais forte e presente. Lula usou seu todo seu carisma e sua história de vida para se colocar como um dos líderes dos países em desenvolvimento.
Para a cientista política, professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), Denilde Holzhacker, Dilma deve ter uma participação menor. “Ela tem um perfil diferente. Desse modo, o Itamaraty deve ter uma presença maior nas negociações internacionais”, explica.
Por outro lado, Denilde ressalta que o próximo governo sinaliza uma continuidade na política externa. O assessor internacional do governo Lula, Marco Aurélio Garcia, foi convidado a permanecer no cargo, o que indica que o PT continuará tendo influência na política externa do país.
Antonio Patriota também é defensor do fortalecimento da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e dos países do hemisfério sul, além de incentivar o chamado “soft power”, a construção de um poder de influência mundial com o uso de iniciativas de cooperações técnicas, propaganda positiva do país e agenda de atuação em temas sociais.
Críticas/A política externa no governo Lula recebeu críticas também sobre sua atuação e prioridades. A ainda pouca liderança na América do Sul, a intromissão na crise de Honduras, a relevância de uma candidatura no Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas), a entrada na polêmica tensão nuclear do distante Irã e a baixa prioridade para a agenda de acordos comerciais são as principais queixas.
O cientista político e economista Corival Alves do Carmo lembra que a principal ameaça ao aumento da influência brasileira na América do Sul já é a China. “A capacidade da China de gerar demanda por exportações é muito maior do que a do Brasil. Uma alternativa pode ser o pré-sal, isso se a exportação de petróleo realmente gerar recursos financeiros que permitam o país gastar mais com o exercício de liderança política regional”, comenta.
Ásia e África são apostas para ‘booms’
O mundo tem duas regiões que são consideradas estratégicas para o crescimento da economia nos próximos 30 anos: a África e o Sudeste Asiático (veja abaixo).
No continente africano, o governo brasileiro tem suas maiores apostas para o futuro, usando cooperação técnica internacional – o que o Itamaraty chama de espírito Sul-Sul, ou seja, incentivar o desenvolvimento e comércio do hemisfério sul. Segundo a ABC (Agência Brasileira de Cooperação), o Brasil tem hoje 34 acordos em vigência ou negociação na África para cooperações econômica, científica e técnica.
O doutor em relações internacionais e mestre em história social pela USP e professor do Centro Universitário Belas Artes e da ESPM, Sidney Ferreira Leite, afirma que a África tem um ambiente atual de cooperação inter-regional e intergovernamental mais propício para o desenvolvimento. “O pensamento dos governos africanos neste século mudou para assumir seus próprios problemas e o paradigma é de que, sem segurança, não há desenvolvimento”, disse.
Mas a crítica que especialistas fazem é que a ABC ainda não tem um papel de gerenciamento, de metodologia de impacto sobre os projetos brasileiros no exterior, ou seja, o próximo governo necessita estruturar uma política de doações internacionais – até para competir melhor com grandes doadores, como a China. “É urgente que participemos mais ativamente desse novo momento do continente africano. O governo Lula promoveu alguns avanços, todavia é necessário fazer muito mais”, diz Sidney.
Asean /Indonésia, Filipinas, Malásia, Singapura, Tailândia e Vietnã, as seis principais economias da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático), crescerão em média 7,3% neste ano e ao ritmo de 6% entre 2011 e 2015, segundo a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Fora a China, é a maior média de crescimento prevista por regiões.
O especialista em marketing e projetos de gestão internacional, professor da ESPM e estudioso da Ásia, Marcelo Zorovich, analisa que esses países são beneficiados por uma série de fatores: mão de obra barata (na comparação com mercados mais desenvolvidos), plataforma de exportação para muitas empresas e setores, e proximidade com China, Índia, Japão e Coreia do Sul. “Ainda se fala pouco dessa região na mídia, mas, hoje, todas as grandes empresas do mundo estão abrindo postos na Asean. Ela tem um ambiente propício para fazer negócios e as leis são rígidas para violência e tráfico de drogas”, comenta.
Em 2007, a Asean já foi o sexto mercado para as exportações brasileiras. O Itamaraty tem fomentado missões comerciais para a região de forma a estreitar o relacionamento com estes países e expandir as possibilidades comerciais, mas há críticas de que esse processo precisa ser aprofundado.
Oportunidades e Riscos
Apostas e prioridades do Brasil nos próximos anos no mundo
América do Sul
O próximo governo brasileiro sinaliza continuar apostando na integração política através da Unasul, que ainda não emplacou e com a morte de Néstor Kirchner está sem presidente.
A união aduaneira do Mercosul ainda discute o fim da tributação entre os países. Também vive o dilema da entrada ou não da Venezuela no bloco.
O Brasil não tem déficit comercial com seus vizinhos da América do Sul. Para especialistas, o que poderia ser bom na verdade deixa a liderança do Brasil em risco na região. A China já é a principal ameaça, com grandes fluxos de comércio nos países e grandes investimentos, principalmente no Peru.
Brasil tenta também terminar sua ligação bioceânica para chegar no Oceano Pacífico, mas falta dinheiro internacional para terminar obras em estradas na Bolívia e linhas ferroviárias no Brasil e Peru.
Sudeste asiático
Juntos, a Tailândia, Filipinas, Malásia, Singapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Mianmar, Laos e Camboja tem uma população de mais de 600 milhões de habitantes. É o bloco de países com a maior média de crescimento no mundo.
Vive de sua plataforma de exportação de serviços e tecnologia, além de ter exploração de petróleo e agricultura. É uma região estratégica no mundo que países como a China, Índia e EUA estão buscando fazer tratados de livre comércio ou aumentar seus laços.
Ásia
O maior continente da Terra, com mais de 4 bilhões de pessoas, deve ser o grande protagonista do século 21. A China é o destaque, com alto crescimento econômico, caminha para se tornar em dez anos ou menos a primeira economia do mundo. Hoje tem US$ 5 trilhões contra US$ 14 trilhões dos EUA. O Brasil tem "apenas" US$ 1,6 trilhão.
Na guerra cambial entre os países a China também é a protagonista. Quase todos os países pressionam os chineses pelo fim da política de desvalorização excessiva do yuan, que vale US$ 0,15, mas não há sinal que isso aconteça rápido.
A Índia, parceira do Brasil em alguns acordos comerciais, também é rival dos brasileiros na disputa de um assento no Conselho de Segurança da ONU e já discordou do Brasil na OMC. China e Índia, que dependem de energia importada, disputam os mesmos fornecedores no mercado internacional, dois gigantes para o Brasil enfrentar ou ser um grande fornecedor.
O Japão ainda é uma potência econômica mundial, mas vive uma estagnação que parece não ter prazo para terminar. A Coreia do Sul está em amplo crescimento, mas vive a tensão de um conflito próximo com a Coreia do Norte. A Rússia ainda tem sérios problemas econômicos e conflitos internos para resolver, mas sempre vai ser uma superpotência militar e tem uma imensa produção de petróleo e gás.
Na Ásia também estão o Afeganistão e o Paquistão, para muitos especialistas de relações internacionais verdadeiras bombas relógio. Redes terroristas atuam nesses países ainda com força e podem causar crises no mundo todo, como aconteceu no 11 de setembro.
Oriente Médio
Em princípio, seria uma região de pouco interesse para o Brasil, mas o governo Lula inseriu a região em suas prioridades. Na estratégia de tentar ser líder mundial, a diplomacia brasileira se aproximou do ditador iraniano Mahmoud Ahmadinejad, junto com a Turquia. Para muitos foi um erro, já que o regime de Teerã não respeita direitos humanos e vive uma tensão nuclear, mas o governo brasileiro defendeu sua iniciativa como uma tentativa de mediação para a chegada de acordos. Só o tempo vai dizer se a aposta foi boa ou se o Irã vai mesmo fazer um programa nuclear com fins militares. Também existe a expectativa de como Dilma Rousseff vai tratar o Irã, que ainda apedreja mulheres.
No conflito Israel-Palestina o Brasil também ofereceu uma mediação, ainda sem resultados. Israel tem um grande acordo de comércio com o Mercosul e no caso da Palestina essa região tem grande simpatia com o Brasil por causa de sua comunidade árabe. Esse caso envolve discussão de fronteiras e a criação ou não do estado palestino, então dificilmente o Brasil terá um papel de destaque nos acordos. A atuação no Oriente Médio é vista mais como para marcar presença de liderança e colher frutos comerciais da aproximação com a região.
O Brasil reconhece a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) desde 1975 e nesta semana reconheceu a existência do estado Palestino, com as fronteiras de 4 de junho de 1967, anteriores à Guerra dos Seis Dias entre árabes e israelenses.
Europa
Vive ainda o fantasma da crise financeira e o desemprego, mas 30% do PIB do mundo está no continente e a Alemanha ainda é a quarta economia do mundo com US$ 3,3 trilhões. O Brasil depende muito da União Europeia para conseguir reformas na ONU. O G-20, ou Grupo dos 20, grupo de países emergentes, também precisa entrar em acordo com a União Europeia em muitos tratados comerciais e de agricultura.
África
Tem sérios problemas sociais e o flagelo da aids, mas já deixou de ser o "continente esquecido". A chamada África Austral, parte sul da África, banhada pelo Oceano Índico na sua costa oriental e pelo Atlântico na costa ocidental, é o destaque. Países como Angola, Moçambique e África do Sul já tem um desenvolvimento promissor.
O continente africano tem uma mão de obra gigante, com mais de um bilhão de pessoas, é visto como futuro mercado para todo o mundo e tem vastas reservas de minérios. Empresas brasileiras como a Vale e o Bradesco de olho nisso já tem atuação na África. O governo brasileiro também tem diversas cooperações técnicas com países africanos.
Mas, como sempre, a maior ameaça de influência na África é a China, que já investe bilhões de dólares nos países em obras principalmente de infraestrutura.
EUA
Ainda é a superpotência do mundo em segurança (armas, tecnologia, participação em conflitos), economia (US$ 14 trilhões de PIB) e assuntos transnacionais (meio ambiente, direitos humanos), mas os EUA convivem com problemas que podem deixar um vácuo de poder para nações como a China, Índia, Rússia, Coreia do Sul, Alemanha e até o Brasil.
A crise ainda está nos EUA com o emprego e o consumo resistindo a voltar com força. Para tentar sair da crise os EUA seguem desvalorizando o dólar. Isso é feito com pacotes para estimular a economia local, com a emissão de mais dinheiro para estimular o crédito. Porém, com mais dólar na praça seu valor cai no mundo e as exportações do resto dos países são prejudicadas.
Internamente nos EUA essas medidas de estímulo ainda não vêm motivando o consumo maior e o pior: a China por ter uma moeda superdesvalorizada artificialmente, exporta como nunca para os EUA e atrapalha sua indústria nacional. Os norte americanos reclamam da China, mas ela já é a maior possuídora de títulos da dívida dos EUA e por isso tem espaço para continuar sua política cambial.
Qualquer guerra ou ameaça terrorista no mundo os EUA também vão se envolver ou já se envolvem, então suas decisões serão sempre importantes para os rumos geopolíticos do mundo. Fora isso, em decisões importantes na ONU e na OMC o Brasil vai precisar pelo menos da simpatia dos EUA para ter êxitos.
Fontes: Especialistas entrevistados e ONU
O governo Dilma deve marcar o fim da chamada diplomacia presidencial, que teve início com Fernando Henrique Cardoso e, nos oito anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva, se fez ainda mais forte e presente. Lula usou seu todo seu carisma e sua história de vida para se colocar como um dos líderes dos países em desenvolvimento.
Para a cientista política, professora da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), Denilde Holzhacker, Dilma deve ter uma participação menor. “Ela tem um perfil diferente. Desse modo, o Itamaraty deve ter uma presença maior nas negociações internacionais”, explica.
Por outro lado, Denilde ressalta que o próximo governo sinaliza uma continuidade na política externa. O assessor internacional do governo Lula, Marco Aurélio Garcia, foi convidado a permanecer no cargo, o que indica que o PT continuará tendo influência na política externa do país.
Antonio Patriota também é defensor do fortalecimento da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) e dos países do hemisfério sul, além de incentivar o chamado “soft power”, a construção de um poder de influência mundial com o uso de iniciativas de cooperações técnicas, propaganda positiva do país e agenda de atuação em temas sociais.
Críticas/A política externa no governo Lula recebeu críticas também sobre sua atuação e prioridades. A ainda pouca liderança na América do Sul, a intromissão na crise de Honduras, a relevância de uma candidatura no Conselho de Segurança da ONU (Organização das Nações Unidas), a entrada na polêmica tensão nuclear do distante Irã e a baixa prioridade para a agenda de acordos comerciais são as principais queixas.
O cientista político e economista Corival Alves do Carmo lembra que a principal ameaça ao aumento da influência brasileira na América do Sul já é a China. “A capacidade da China de gerar demanda por exportações é muito maior do que a do Brasil. Uma alternativa pode ser o pré-sal, isso se a exportação de petróleo realmente gerar recursos financeiros que permitam o país gastar mais com o exercício de liderança política regional”, comenta.
Ásia e África são apostas para ‘booms’
O mundo tem duas regiões que são consideradas estratégicas para o crescimento da economia nos próximos 30 anos: a África e o Sudeste Asiático (veja abaixo).
No continente africano, o governo brasileiro tem suas maiores apostas para o futuro, usando cooperação técnica internacional – o que o Itamaraty chama de espírito Sul-Sul, ou seja, incentivar o desenvolvimento e comércio do hemisfério sul. Segundo a ABC (Agência Brasileira de Cooperação), o Brasil tem hoje 34 acordos em vigência ou negociação na África para cooperações econômica, científica e técnica.
O doutor em relações internacionais e mestre em história social pela USP e professor do Centro Universitário Belas Artes e da ESPM, Sidney Ferreira Leite, afirma que a África tem um ambiente atual de cooperação inter-regional e intergovernamental mais propício para o desenvolvimento. “O pensamento dos governos africanos neste século mudou para assumir seus próprios problemas e o paradigma é de que, sem segurança, não há desenvolvimento”, disse.
Mas a crítica que especialistas fazem é que a ABC ainda não tem um papel de gerenciamento, de metodologia de impacto sobre os projetos brasileiros no exterior, ou seja, o próximo governo necessita estruturar uma política de doações internacionais – até para competir melhor com grandes doadores, como a China. “É urgente que participemos mais ativamente desse novo momento do continente africano. O governo Lula promoveu alguns avanços, todavia é necessário fazer muito mais”, diz Sidney.
Asean /Indonésia, Filipinas, Malásia, Singapura, Tailândia e Vietnã, as seis principais economias da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático), crescerão em média 7,3% neste ano e ao ritmo de 6% entre 2011 e 2015, segundo a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Fora a China, é a maior média de crescimento prevista por regiões.
O especialista em marketing e projetos de gestão internacional, professor da ESPM e estudioso da Ásia, Marcelo Zorovich, analisa que esses países são beneficiados por uma série de fatores: mão de obra barata (na comparação com mercados mais desenvolvidos), plataforma de exportação para muitas empresas e setores, e proximidade com China, Índia, Japão e Coreia do Sul. “Ainda se fala pouco dessa região na mídia, mas, hoje, todas as grandes empresas do mundo estão abrindo postos na Asean. Ela tem um ambiente propício para fazer negócios e as leis são rígidas para violência e tráfico de drogas”, comenta.
Em 2007, a Asean já foi o sexto mercado para as exportações brasileiras. O Itamaraty tem fomentado missões comerciais para a região de forma a estreitar o relacionamento com estes países e expandir as possibilidades comerciais, mas há críticas de que esse processo precisa ser aprofundado.
Oportunidades e Riscos
Apostas e prioridades do Brasil nos próximos anos no mundo
América do Sul
O próximo governo brasileiro sinaliza continuar apostando na integração política através da Unasul, que ainda não emplacou e com a morte de Néstor Kirchner está sem presidente.
A união aduaneira do Mercosul ainda discute o fim da tributação entre os países. Também vive o dilema da entrada ou não da Venezuela no bloco.
O Brasil não tem déficit comercial com seus vizinhos da América do Sul. Para especialistas, o que poderia ser bom na verdade deixa a liderança do Brasil em risco na região. A China já é a principal ameaça, com grandes fluxos de comércio nos países e grandes investimentos, principalmente no Peru.
Brasil tenta também terminar sua ligação bioceânica para chegar no Oceano Pacífico, mas falta dinheiro internacional para terminar obras em estradas na Bolívia e linhas ferroviárias no Brasil e Peru.
Sudeste asiático
Juntos, a Tailândia, Filipinas, Malásia, Singapura, Indonésia, Brunei, Vietnã, Mianmar, Laos e Camboja tem uma população de mais de 600 milhões de habitantes. É o bloco de países com a maior média de crescimento no mundo.
Vive de sua plataforma de exportação de serviços e tecnologia, além de ter exploração de petróleo e agricultura. É uma região estratégica no mundo que países como a China, Índia e EUA estão buscando fazer tratados de livre comércio ou aumentar seus laços.
Ásia
O maior continente da Terra, com mais de 4 bilhões de pessoas, deve ser o grande protagonista do século 21. A China é o destaque, com alto crescimento econômico, caminha para se tornar em dez anos ou menos a primeira economia do mundo. Hoje tem US$ 5 trilhões contra US$ 14 trilhões dos EUA. O Brasil tem "apenas" US$ 1,6 trilhão.
Na guerra cambial entre os países a China também é a protagonista. Quase todos os países pressionam os chineses pelo fim da política de desvalorização excessiva do yuan, que vale US$ 0,15, mas não há sinal que isso aconteça rápido.
A Índia, parceira do Brasil em alguns acordos comerciais, também é rival dos brasileiros na disputa de um assento no Conselho de Segurança da ONU e já discordou do Brasil na OMC. China e Índia, que dependem de energia importada, disputam os mesmos fornecedores no mercado internacional, dois gigantes para o Brasil enfrentar ou ser um grande fornecedor.
O Japão ainda é uma potência econômica mundial, mas vive uma estagnação que parece não ter prazo para terminar. A Coreia do Sul está em amplo crescimento, mas vive a tensão de um conflito próximo com a Coreia do Norte. A Rússia ainda tem sérios problemas econômicos e conflitos internos para resolver, mas sempre vai ser uma superpotência militar e tem uma imensa produção de petróleo e gás.
Na Ásia também estão o Afeganistão e o Paquistão, para muitos especialistas de relações internacionais verdadeiras bombas relógio. Redes terroristas atuam nesses países ainda com força e podem causar crises no mundo todo, como aconteceu no 11 de setembro.
Oriente Médio
Em princípio, seria uma região de pouco interesse para o Brasil, mas o governo Lula inseriu a região em suas prioridades. Na estratégia de tentar ser líder mundial, a diplomacia brasileira se aproximou do ditador iraniano Mahmoud Ahmadinejad, junto com a Turquia. Para muitos foi um erro, já que o regime de Teerã não respeita direitos humanos e vive uma tensão nuclear, mas o governo brasileiro defendeu sua iniciativa como uma tentativa de mediação para a chegada de acordos. Só o tempo vai dizer se a aposta foi boa ou se o Irã vai mesmo fazer um programa nuclear com fins militares. Também existe a expectativa de como Dilma Rousseff vai tratar o Irã, que ainda apedreja mulheres.
No conflito Israel-Palestina o Brasil também ofereceu uma mediação, ainda sem resultados. Israel tem um grande acordo de comércio com o Mercosul e no caso da Palestina essa região tem grande simpatia com o Brasil por causa de sua comunidade árabe. Esse caso envolve discussão de fronteiras e a criação ou não do estado palestino, então dificilmente o Brasil terá um papel de destaque nos acordos. A atuação no Oriente Médio é vista mais como para marcar presença de liderança e colher frutos comerciais da aproximação com a região.
O Brasil reconhece a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) desde 1975 e nesta semana reconheceu a existência do estado Palestino, com as fronteiras de 4 de junho de 1967, anteriores à Guerra dos Seis Dias entre árabes e israelenses.
Europa
Vive ainda o fantasma da crise financeira e o desemprego, mas 30% do PIB do mundo está no continente e a Alemanha ainda é a quarta economia do mundo com US$ 3,3 trilhões. O Brasil depende muito da União Europeia para conseguir reformas na ONU. O G-20, ou Grupo dos 20, grupo de países emergentes, também precisa entrar em acordo com a União Europeia em muitos tratados comerciais e de agricultura.
África
Tem sérios problemas sociais e o flagelo da aids, mas já deixou de ser o "continente esquecido". A chamada África Austral, parte sul da África, banhada pelo Oceano Índico na sua costa oriental e pelo Atlântico na costa ocidental, é o destaque. Países como Angola, Moçambique e África do Sul já tem um desenvolvimento promissor.
O continente africano tem uma mão de obra gigante, com mais de um bilhão de pessoas, é visto como futuro mercado para todo o mundo e tem vastas reservas de minérios. Empresas brasileiras como a Vale e o Bradesco de olho nisso já tem atuação na África. O governo brasileiro também tem diversas cooperações técnicas com países africanos.
Mas, como sempre, a maior ameaça de influência na África é a China, que já investe bilhões de dólares nos países em obras principalmente de infraestrutura.
EUA
Ainda é a superpotência do mundo em segurança (armas, tecnologia, participação em conflitos), economia (US$ 14 trilhões de PIB) e assuntos transnacionais (meio ambiente, direitos humanos), mas os EUA convivem com problemas que podem deixar um vácuo de poder para nações como a China, Índia, Rússia, Coreia do Sul, Alemanha e até o Brasil.
A crise ainda está nos EUA com o emprego e o consumo resistindo a voltar com força. Para tentar sair da crise os EUA seguem desvalorizando o dólar. Isso é feito com pacotes para estimular a economia local, com a emissão de mais dinheiro para estimular o crédito. Porém, com mais dólar na praça seu valor cai no mundo e as exportações do resto dos países são prejudicadas.
Internamente nos EUA essas medidas de estímulo ainda não vêm motivando o consumo maior e o pior: a China por ter uma moeda superdesvalorizada artificialmente, exporta como nunca para os EUA e atrapalha sua indústria nacional. Os norte americanos reclamam da China, mas ela já é a maior possuídora de títulos da dívida dos EUA e por isso tem espaço para continuar sua política cambial.
Qualquer guerra ou ameaça terrorista no mundo os EUA também vão se envolver ou já se envolvem, então suas decisões serão sempre importantes para os rumos geopolíticos do mundo. Fora isso, em decisões importantes na ONU e na OMC o Brasil vai precisar pelo menos da simpatia dos EUA para ter êxitos.
Fontes: Especialistas entrevistados e ONU
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quinta-feira, 18 de novembro de 2010
‘Cenário no Brasil mostra desindustrialização’
Em entrevista ontem em São Paulo, um dos principais diretores da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) afirmou que o país passa por um processo de desindustrialização.
Na apresentação do INA (Índice de Nível de Atividade) de setembro, Paulo Francini, diretor do Departamento de Pesquisas e Estudos Econômicos da Fiesp, afirmou que a indústria paulista registrou queda de 0,1% no mês passado ante agosto, na série com ajuste sazonal. Sem a correção, a queda foi de 0,4%.
“O país vive um processo de perda relativa da indústria na formação do PIB [Produto Interno Bruto] e na geração de emprego”, comentou.
As horas trabalhadas na produção e as vendas reais tiveram aumento no mês passado, de 0,2% e 1,2%, respectivamente. No entanto, o Nível de Utilização da Capacidade Instalada registrou retração de 0,8%, passando de 82,5% em agosto para 81,9% no último mês.
Guerra /Paulo mencionou como um dos principais fatores para a desindustrialização a guerra cambial que o mundo atravessa. Os principais atores nesse processo são a China, que mantém a política de desvalorização agressiva do yuan para estimular suas exportações, e os EUA, que ainda afetado pela crise financeira mundial não consegue deixar o dólar forte no resto do mundo.
O real em relação do dólar, por exemplo, ontem fechou a R$ 1,714, em queda de 0,46%. No ano, o dólar registra queda de 1,66%.
Internamente, o Brasil está com uma demanda aquecida de consumo, mas com o câmbio desfavorável a indústria nacional vem perdendo espaço para as importações.
“Nunca a indústria brasileira enfrentou tanto risco como agora”, alerta Paulo Francini, que também cobrou atenção especial do próximo presidente sobre essas questões, qualquer deles que seja eleito.
Na apresentação do INA (Índice de Nível de Atividade) de setembro, Paulo Francini, diretor do Departamento de Pesquisas e Estudos Econômicos da Fiesp, afirmou que a indústria paulista registrou queda de 0,1% no mês passado ante agosto, na série com ajuste sazonal. Sem a correção, a queda foi de 0,4%.
“O país vive um processo de perda relativa da indústria na formação do PIB [Produto Interno Bruto] e na geração de emprego”, comentou.
As horas trabalhadas na produção e as vendas reais tiveram aumento no mês passado, de 0,2% e 1,2%, respectivamente. No entanto, o Nível de Utilização da Capacidade Instalada registrou retração de 0,8%, passando de 82,5% em agosto para 81,9% no último mês.
Guerra /Paulo mencionou como um dos principais fatores para a desindustrialização a guerra cambial que o mundo atravessa. Os principais atores nesse processo são a China, que mantém a política de desvalorização agressiva do yuan para estimular suas exportações, e os EUA, que ainda afetado pela crise financeira mundial não consegue deixar o dólar forte no resto do mundo.
O real em relação do dólar, por exemplo, ontem fechou a R$ 1,714, em queda de 0,46%. No ano, o dólar registra queda de 1,66%.
Internamente, o Brasil está com uma demanda aquecida de consumo, mas com o câmbio desfavorável a indústria nacional vem perdendo espaço para as importações.
“Nunca a indústria brasileira enfrentou tanto risco como agora”, alerta Paulo Francini, que também cobrou atenção especial do próximo presidente sobre essas questões, qualquer deles que seja eleito.
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sábado, 6 de novembro de 2010
Santander busca Brasil para crescer mais
O presidente mundial do Banco Santander, Emilio Botín, 72 anos, participou na manhã de ontem, em São Paulo, da cerimônia de integração das marcas no Brasil, extinguindo a identidade visual do antigo Banco Real, comprado no fim de 2007.
A partir de agora, as antigas agências do Real passam a ter as fachadas vermelhas e o logo do espanhol Santander. A unificação das operações entre os dois bancos também já está quase encerrada – cerca de 95% dos serviços disponibilizados pelo banco já podem ser realizados nas redes do antigo Real e no Santander.
Apenas algumas transações continuarão ainda restritas às agências de origem do cliente, como crédito rural e leasing. Segundo o presidente do Santander Brasil, Fábio Barbosa, as operações estarão todas ligadas em fevereiro. “Foi uma opção por uma mudança gradual, para o mínimo de transtornos aos clientes. Em fevereiro, começarão as mudanças dos números das contas”, disse.
O Santander realizou testes dos novos sistemas integrados com mais de 100 mil clientes no interior de São Paulo. Foram feitos pilotos em Limeira, Piracicaba, Americana e Rio Claro.
Estratégico/Em entrevista coletiva, Botín falou da filosofia de atuar como banco comercial em países emergentes e desenvolvidos com foco nos clientes e destacou a posição principal do Brasil. “O Brasil já representa 25% dos nossos resultados gerais no mundo. O Reino Unido vem em segundo, com 18%, e a Espanha em terceiro, com 17%”, explicou.
No fim do mês passado, o Santander anunciou um lucro líquido no mundo dos nove primeiros meses do ano de
6,08 bilhões de euros (R$ 14,5 bilhões), queda de 9,8% em relação ao mesmo período do ano passado. Já o Santander Brasil, nos nove primeiros meses, teve alta de 39,5%, chegando a
R$ 5,464 bilhões.
Na Espanha e em grande parte da Europa, o banco ainda sofre com a crise financeira mundial. A instituição financeira foi obrigada a reservar 472 milhões de euros (R$ 1,126 bilhão) gerados por provisões. A reserva faz parte de regras espanholas, que foram endurecidas depois da crise para tornar os bancos mais sólidos.
Esses números fazem Botín considerar o Brasil altamente estratégico. O grupo Santander Brasil conta hoje com 3.623 agências, sendo que 2.035 são provenientes do Real. Ele afirmou que pretende continuar crescendo com sustentabilidade e não descartou “aproveitar oportunidades” para outras aquisições bancárias. O banco planeja abrir 600 agências até 2013 no país. Neste ano, serão abertas 120 agências.
HISTÓRIA
O Santander foi criado em 1857, na Espanha. No Brasil, a chegada foi em 1982. A partir de 1997, os espanhóis compraram cinco bancos no Brasil, entre eles o Banespa, durante leilão em 2000. Hoje, o Santander é o terceiro maior banco privado do Brasil.
Espanhol diz acreditar em governo Dilma
Os executivos do Santander disseram ontem acreditar que o futuro governo da presidente eleita Dilma Rousseff (PT) deve ter êxitos. “Creio que o novo governo seguirá desenvolvendo o país. Em pouco mais de uma década, o Brasil deve se transformar na quinta maior economia do mundo”, disse Emilio Botín.
Ele elogiou o sistema financeiro exemplar do Brasil e a “lição” que o país deu ao mundo ao sair rapidamente da crise.
Fábio Barbosa também fez elogios ao novo governo, mas, ao ser questionado sobre os motivos dos juros que o Santander cobra no Brasil serem maiores do que os praticados em países ricos, ele explicou que ainda são necessários avanços. “Aqui, há tributação na intermediação financeira e os bancos precisam fazer elevados depósitos compulsórios ao governo. Além disso, o Brasil precisa de um cadastro positivo. Os juros cairão quando nossas características foram as mesmas do exterior”, comentou.
Emilio Botín também veio ao Brasil assistir ao GP da Fórmula 1, evento que o banco espanhol é um dos principais patrocinadores.
Opinião
Luis Miguel Santacreu,
analista de instituições financeiras da agência de risco Austin Rating
As recentes fusões e aquisições bancárias no Brasil parecem já consolidadas. Não são mais esperados grandes movimentos, a não ser se forem negociados os bancos de governos estaduais.
Esse processo criou no Brasil uma forte concentração bancária, principalmente no varejo. Mas são instituições sólidas, que respeitam normas rígidas do BC (Banco Central) e tem muita liquidez. O lado prejudicial pode ocorrer no abuso do poder econômico, como nas tarifas excessivas. Nesse caso, o BC poderia regulamentar melhor o setor.
Enfim, os bancos brasileiros devem continuar crescendo muito nos próximos anos. O Brasil precisa de muito crédito para sua economia: obras de infraestrutura, consumo, ampliação da produção das empresas, aquisição de imóveis e carros, tudo isso necessita do crédito dos bancos. O país tem ainda muitas carências que os bancos vão ajudar a suprir.
A partir de agora, as antigas agências do Real passam a ter as fachadas vermelhas e o logo do espanhol Santander. A unificação das operações entre os dois bancos também já está quase encerrada – cerca de 95% dos serviços disponibilizados pelo banco já podem ser realizados nas redes do antigo Real e no Santander.
Apenas algumas transações continuarão ainda restritas às agências de origem do cliente, como crédito rural e leasing. Segundo o presidente do Santander Brasil, Fábio Barbosa, as operações estarão todas ligadas em fevereiro. “Foi uma opção por uma mudança gradual, para o mínimo de transtornos aos clientes. Em fevereiro, começarão as mudanças dos números das contas”, disse.
O Santander realizou testes dos novos sistemas integrados com mais de 100 mil clientes no interior de São Paulo. Foram feitos pilotos em Limeira, Piracicaba, Americana e Rio Claro.
Estratégico/Em entrevista coletiva, Botín falou da filosofia de atuar como banco comercial em países emergentes e desenvolvidos com foco nos clientes e destacou a posição principal do Brasil. “O Brasil já representa 25% dos nossos resultados gerais no mundo. O Reino Unido vem em segundo, com 18%, e a Espanha em terceiro, com 17%”, explicou.
No fim do mês passado, o Santander anunciou um lucro líquido no mundo dos nove primeiros meses do ano de
6,08 bilhões de euros (R$ 14,5 bilhões), queda de 9,8% em relação ao mesmo período do ano passado. Já o Santander Brasil, nos nove primeiros meses, teve alta de 39,5%, chegando a
R$ 5,464 bilhões.
Na Espanha e em grande parte da Europa, o banco ainda sofre com a crise financeira mundial. A instituição financeira foi obrigada a reservar 472 milhões de euros (R$ 1,126 bilhão) gerados por provisões. A reserva faz parte de regras espanholas, que foram endurecidas depois da crise para tornar os bancos mais sólidos.
Esses números fazem Botín considerar o Brasil altamente estratégico. O grupo Santander Brasil conta hoje com 3.623 agências, sendo que 2.035 são provenientes do Real. Ele afirmou que pretende continuar crescendo com sustentabilidade e não descartou “aproveitar oportunidades” para outras aquisições bancárias. O banco planeja abrir 600 agências até 2013 no país. Neste ano, serão abertas 120 agências.
HISTÓRIA
O Santander foi criado em 1857, na Espanha. No Brasil, a chegada foi em 1982. A partir de 1997, os espanhóis compraram cinco bancos no Brasil, entre eles o Banespa, durante leilão em 2000. Hoje, o Santander é o terceiro maior banco privado do Brasil.
Espanhol diz acreditar em governo Dilma
Os executivos do Santander disseram ontem acreditar que o futuro governo da presidente eleita Dilma Rousseff (PT) deve ter êxitos. “Creio que o novo governo seguirá desenvolvendo o país. Em pouco mais de uma década, o Brasil deve se transformar na quinta maior economia do mundo”, disse Emilio Botín.
Ele elogiou o sistema financeiro exemplar do Brasil e a “lição” que o país deu ao mundo ao sair rapidamente da crise.
Fábio Barbosa também fez elogios ao novo governo, mas, ao ser questionado sobre os motivos dos juros que o Santander cobra no Brasil serem maiores do que os praticados em países ricos, ele explicou que ainda são necessários avanços. “Aqui, há tributação na intermediação financeira e os bancos precisam fazer elevados depósitos compulsórios ao governo. Além disso, o Brasil precisa de um cadastro positivo. Os juros cairão quando nossas características foram as mesmas do exterior”, comentou.
Emilio Botín também veio ao Brasil assistir ao GP da Fórmula 1, evento que o banco espanhol é um dos principais patrocinadores.
Opinião
Luis Miguel Santacreu,
analista de instituições financeiras da agência de risco Austin Rating
As recentes fusões e aquisições bancárias no Brasil parecem já consolidadas. Não são mais esperados grandes movimentos, a não ser se forem negociados os bancos de governos estaduais.
Esse processo criou no Brasil uma forte concentração bancária, principalmente no varejo. Mas são instituições sólidas, que respeitam normas rígidas do BC (Banco Central) e tem muita liquidez. O lado prejudicial pode ocorrer no abuso do poder econômico, como nas tarifas excessivas. Nesse caso, o BC poderia regulamentar melhor o setor.
Enfim, os bancos brasileiros devem continuar crescendo muito nos próximos anos. O Brasil precisa de muito crédito para sua economia: obras de infraestrutura, consumo, ampliação da produção das empresas, aquisição de imóveis e carros, tudo isso necessita do crédito dos bancos. O país tem ainda muitas carências que os bancos vão ajudar a suprir.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Carne vai ficar mais cara
Comer carne vermelha no estado de São Paulo já está caro e o preço vai subir ainda mais. O Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), da Esalq/USP, divulgou que a arroba do boi (14,69 kg) bateu os R$ 100 no mercado paulista, uma marca histórica. O reflexo já está nos açougues.
Ontem a cotação do boi fechou a R$ 101,35, o segundo maior valor desde o início da série histórica do Cepea em julho de 1997. Até o momento, a maior média mensal do indicador é de R$ 102,99, verificada em novembro de 1999 com valores já deflacionados.
Passado /O pesquisador responsável do Cepea, Sergio De Zen, explica que o mercado de carne em São Paulo está colhendo frutos de situações e decisões do passado.
Há cinco anos, o preço da arroba do boi estava baixo e isso desestimulou a produção de boi. Com isso, muitas matrizes (vacas) foram abatidas.
Por consequência, este ano há uma oferta de boi menor nos frigoríficos para abate. Se juntaram a isso a estiagem severa dos últimos meses, o mercado interno aquecido e o crescimento das exportações. Segundo dados da Secex (Secretaria de Comércio Exterior), no acumulado deste ano, o volume de carne in natura embarcado foi 10% superior ao do mesmo período do ano passado.
O rebanho nacional, que chegou a cerca de 206 milhões de cabeças há cinco anos, fica hoje em torno de 180 milhões de cabeças, segundo a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).
Futuro /O presidente do Fórum Nacional Permanente de Pecuária de Corte da CNA , Antenor Nogueira, afirma que essa situação de alta do preço da carne é nacional. “Sem conseguir renda suficiente para se manter na atividade, os pecuaristas não tiveram opção e foram obrigados a abater boa parte do rebanho, a maioria de fêmeas”, diz.
A disponibilidade de animais para abate é tradicionalmente menor durante o período de inverno. Mas, segundo a CNA, não há perspectiva de redução de preços, mesmo com o fim da entressafra.
Os confinamentos (criação de bovinos em piquetes ou currais) são finalizados até meados de novembro, após as primeiras chuvas. Neste ano, no entanto, as queimadas destruíram as pastagem e a recuperação deve levar mais tempo, o que resultará em atraso na conclusão do processo de engorda. “Os preços do boi gordo não devem cair, mesmo com a chegada das chuvas”, completa.
Segundo pesquisa da CNA, a alta dos preços dos cortes no atacado superou a valorização da cotação do boi gordo. No acumulado do ano até agosto, os preços do dianteiro (parte menos nobre do boi) foram os que mais subiram no atacado: 38,84%. O preço da ponta de agulha, por exemplo, subiu 31,74% no período analisado.
Ontem a cotação do boi fechou a R$ 101,35, o segundo maior valor desde o início da série histórica do Cepea em julho de 1997. Até o momento, a maior média mensal do indicador é de R$ 102,99, verificada em novembro de 1999 com valores já deflacionados.
Passado /O pesquisador responsável do Cepea, Sergio De Zen, explica que o mercado de carne em São Paulo está colhendo frutos de situações e decisões do passado.
Há cinco anos, o preço da arroba do boi estava baixo e isso desestimulou a produção de boi. Com isso, muitas matrizes (vacas) foram abatidas.
Por consequência, este ano há uma oferta de boi menor nos frigoríficos para abate. Se juntaram a isso a estiagem severa dos últimos meses, o mercado interno aquecido e o crescimento das exportações. Segundo dados da Secex (Secretaria de Comércio Exterior), no acumulado deste ano, o volume de carne in natura embarcado foi 10% superior ao do mesmo período do ano passado.
O rebanho nacional, que chegou a cerca de 206 milhões de cabeças há cinco anos, fica hoje em torno de 180 milhões de cabeças, segundo a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil).
Futuro /O presidente do Fórum Nacional Permanente de Pecuária de Corte da CNA , Antenor Nogueira, afirma que essa situação de alta do preço da carne é nacional. “Sem conseguir renda suficiente para se manter na atividade, os pecuaristas não tiveram opção e foram obrigados a abater boa parte do rebanho, a maioria de fêmeas”, diz.
A disponibilidade de animais para abate é tradicionalmente menor durante o período de inverno. Mas, segundo a CNA, não há perspectiva de redução de preços, mesmo com o fim da entressafra.
Os confinamentos (criação de bovinos em piquetes ou currais) são finalizados até meados de novembro, após as primeiras chuvas. Neste ano, no entanto, as queimadas destruíram as pastagem e a recuperação deve levar mais tempo, o que resultará em atraso na conclusão do processo de engorda. “Os preços do boi gordo não devem cair, mesmo com a chegada das chuvas”, completa.
Segundo pesquisa da CNA, a alta dos preços dos cortes no atacado superou a valorização da cotação do boi gordo. No acumulado do ano até agosto, os preços do dianteiro (parte menos nobre do boi) foram os que mais subiram no atacado: 38,84%. O preço da ponta de agulha, por exemplo, subiu 31,74% no período analisado.
MPEs paulistas terão R$ 236 mi para inovação
As MPEs (micro e pequenas empresas) paulistas terão mais recursos a partir do ano que vem para a inovação e tecnologia. Ontem, em São Paulo, o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) lançou uma ampliação do programa Sebraetec, de apoio a inovação.
Para o período de 2011 a 2013, serão destinados R$ 787 milhões para o Brasil todo. Segundo o gerente da unidade de acesso a inovação e tecnologia do Sebrae, Edson Sermann, o estado de São Paulo receberá nada menos que cerca de 30% do valor (R$ 236,1 milhões).
Neste ano, o Sebraetec prevê investir R$ 28 milhões no Brasil. Ano que vem, na nova fase, o primeiro ano terá R$ 85 milhões para subvenções.
O dinheiro será aplicado em projetos de MPEs que venham ampliar seus negócios, promovendo a competitividade e o desenvolvimento sustentável desses empreendimentos.
A liberação de recursos começará a partir de janeiro, por meio de duas formas: para projetos mais simples (até R$ 30 mil), o empresário precisará procurar o Sebrae e mostrar suas necessidades; e para intenções mais elaboradas (até R$ 600 mil), será necessário apresentar projetos em editais que serão abertos pelo Sebrae nos estados. O Sebrae afirma que vai subsidiar até 50% dos projetos.
Edson Sermann defende a inovação como uma prioridade nas empresas, tenham elas qualquer porte. “Precisamos desmitificar a inovação no Brasil. Uma empresa pode inovar em qualquer área, como tecnologia, marketing, processos, sempre com grandes retornos”, disse.
As MPEs também se apresentam no Brasil como altamente estratégicas. Segundo o Ministério do Trabalho, 56% da mão de obra com carteira assinada do país está nas MPEs. Do total de 28 milhões de empregos urbanos (42% da população economicamente ativa) gerados pela iniciativa privada, 16 milhões são gerados por micro e pequenas empresas.
Num cenário de alta competição com produtos importados, Edson defende que a inovação é também um meio de sobrevivência. “Nós entendemos as MPEs precisam de inovação para ficarem no mercado. Os pequenos negócios nacionais estão sendo afetados com a vinda de vários produtos importados”, aponta.
Um grupo de empresários brasileiros criou ano passado o MEI (Movimento Empresarial pela Inovação) para pressionar o próximo governo a dar mais espaço para a inovação. A queixa é que a Lei de Inovação, sancionada em 2004, e Lei do Bem, de 2007, não foram suficientes para estabelecer um marco regulatório para incentivar a inovação.
Após as eleições de outubro, o MEI vai apresentar ao próximo presidente eleito um diagnóstico da inovação no Brasil e cobrar providências.
Há reclamações como a falta de políticas de inovação setoriais e poucos recursos para plataformas de inovação para processos de longo prazo.
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segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Todos os portos para Elizabeth Bishop
Certamente, uma das coisas mais marcantes na peça "Um porto para Elizabeth Bishop" é a sua reciprocidade: a personagem amou intensamente o Brasil da mesma forma como o público do espetáculo a ama. O grande achado da autora deste monólogo, a escritora e jornalista Marta Góes, foi conseguir mostrar o fascínio da poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979) pelo Brasil, e também reproduzir a simpatia que os brasileiros que viveram com ela sentiram. A atriz Regina Braga representa uma mulher sensível e carente que é adotada pela platéia.
E esse amor não é piegas, pelo contrário, sabe ser crítico e bem-humorado. Nós rimos de Elizabeth contando nossas misérias: o atraso do país (Bishop não acredita como tudo é tão desorganizado), e a elite permanente ("a elite no Brasil deve ser muito pequena, pois são todos parentes, os políticos, os artistas"). E também ficamos emocionados com a descrição de nossos pequenos detalhes: mães embalando com carinho os filhos em grossas mantas mesmo no verão, e a nossa mania de tentar ajudar aqueles que gostamos ("todo mundo me receitava um remédio, o Brasil é o melhor lugar do mundo para ficar doente").
Regina Braga, 30 anos de carreira e vários prêmios (duas vezes o Molière, 1983 com "Chiquinha Gonzaga", e 1991 por "Uma relação tão delicada"), procurava uma peça que falasse sobre o Brasil e pediu ajuda para Marta Góes. Ela tinha acabado de ler "Poemas do Brasil" de Elizabeth Bishop e se encantava com a poeta que havia morado em Petrópolis (RJ), cidade que ela passou sua infância. As duas, amigas que já trabalharam juntas (Regina dirigiu "Prepare seus pés para o verão", de Marta), decidiram então montar uma peça a partir das cartas e poemas de Bishop que falavam do Brasil. Convidaram para dirigir José Possi Neto ("Emoções Baratas", "Tratar com Murdock").
A peça estreou no Festival de Teatro de Curitiba do ano passado, e Regina Braga já ganhou o prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) por sua atuação, além de Marta Góes ter sido indicada ao Prêmio Shell deste ano.
Todo esse reconhecimento tem motivos de sobra. Regina está radiosa no espetáculo e a delicadeza dos temas impressiona: a relação amorosa que Bishop teve com a arquiteta carioca Lota Macedo Soares é tratada de uma forma muito natural, relatando o convívio das duas, seus sonhos, brigas, preconceitos sofridos; e os caminhos tortos que um artista percorre, vivendo com a solidão e a eterna dúvida da imperfeição, no caso da poeta marcados pelo alcoolismo e a depressão, magnificamente encenados por Regina. Destaque também para o deslumbrante cenário de Jean Pierre Tortill.
Elizabeth Bishop fazia uma viagem de circunavegação pela América em 1951 e desembarcou no porto de Santos para uma escala de poucos dias no Brasil. Visitando Petrópolis, ela comeu o "fruto proibido": provou um caju e teve uma grave intoxicação alérgica. Só que ao invés de ser expulsa do "paraíso", ela foi acolhida nele: se apaixonou por Lota (que cuidou da poeta enquanto ela estava doente) e pelo país, acabou ficando por longos 15 anos. Nesse período sua poesia floresceu, ela ganhou o Prêmio Pulitzer de poesia em 1956.
Uma das mais belas poesias de Bishop, "The Shampoo", fala da paisagem brasileira e dos cabelos de Lota:
"O banho de xampu"
"Os líquens - silenciosas explosões nas pedras - crescem e engordam, concêntricas, cinzentas concussões. Têm um encontro marcado com os halos ao redor da lua, embora até o momento nada tenha mudado.
E, como o céu há de nos dar guarida, enquanto isso não se der, você há de convir, amiga, que se precipitou; e eis no que dá. Porque o Tempo é, mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas cadentes, arredias. Para onde irão elas tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia amassada e brilhante como a lua."
(Tradução de Paulo Henriques Britto do poema "The Shampoo", publicado em "Poemas do Brasil", Cia. das Letras, 1999)
A atriz Regina Braga concedeu uma entrevista coletiva pouco antes do espetáculo. Leia a seguir alguns trechos:
Pergunta - Quais a sensação de estar encenando pela primeira vez um monólogo?
Regina Braga - Pânico! (risos). Eu sempre fui uma atriz que se apoiou nos companheiros de peça nos momentos de dificuldade. Acho que o que me salvou foi o texto da Marta, é um texto pelo qual as pessoas se interessam, todo mundo fica curioso com a história de uma gringa observando e sentindo o Brasil. E o Possi foi um diretor muito atencioso nos ensaios, alguém que me deu muito carinho.
Pergunta - Comente a direção de José Possi Neto.
Braga - Ele é um diretor muito generoso, um dos poucos que não me machucaram. Porque o início de uma encenação é sempre muito difícil, você se expõe ao ridículo quando começa a ensaiar. O Possi também soube ver o humor da peça, em cenas que a princípio eu não tinha notado.
Bazarcultura - Muitos críticos afirmam que as melhores poesias de Elizabeth Bishop foram escritas no período em que ela viveu no Brasil. Você acha que isso deveu a?
Braga - No início do espetáculo, numa cena que adoro fazer, ela diz que no Brasil "há um excesso de cascatas". Então foi isso, ela se deslumbrou pelo Brasil, primeiro pela paisagem, as cachoeiras de Petrópolis, e depois pelos brasileiros, que deram afeto e cuidados para ela. Bishop era órfã dos pais, sofreu muito, quando ela se viu sendo tocada, cuidada pelos brasileiros, se sentiu muito bem. Como ela diz, sofreu um "choque amoroso". Na peça é nítida a melhora da sua vida quando ela passa a morar no Brasil.
Bazarcultura - Como é interpretar uma personagem tão sensível, e sendo esta uma estrangeira observando o Brasil?
Braga - É ótimo. Eu me sinto muito a vontade para criticar o país, pois interpreto uma estrangeira (risos). Eu adoro fazer.
Bazarcultura - A maior parte do texto da peça é baseado nas cartas que Bishop escreveu para seus amigos. Você já tinha trabalhado com um texto feito de cartas, e como foi o trabalho junto com a Marta Góes na sua elaboração?
Braga - Na verdade, a Marta transformou as cartas em textos dramáticos, são poucos os momentos em que eu declamo as cartas, como quando a Elizabeth escreve uma carta para sua médica, a doutora Anne. A Marta foi escrevendo o texto e me mostrando, outras versões foram surgindo de observações em conjunto nossas. Sabe, o escritor às vezes não percebe a redundância de uma cena, ou como ela poderia ser transformada num gesto, coisa que o ator vê logo.
Pergunta - Como você vê o teatro brasileiro hoje?
Braga - Desde quando comecei vem piorando. O público vem diminuindo. "Uma relação tão delicada", por exemplo, ficou em cartaz por quatro anos. Antigamente, era normal você fazer um espetáculo durante dois anos em São Paulo, um no Rio, e mais um excursionando pelo Interior e outras capitais. O ator não consegue mais viver da bilheteria, precisa de patrocinadores, o que muitas vezes tira a sua liberdade.
(Matéria realizada para o site Bazarcultura)
E esse amor não é piegas, pelo contrário, sabe ser crítico e bem-humorado. Nós rimos de Elizabeth contando nossas misérias: o atraso do país (Bishop não acredita como tudo é tão desorganizado), e a elite permanente ("a elite no Brasil deve ser muito pequena, pois são todos parentes, os políticos, os artistas"). E também ficamos emocionados com a descrição de nossos pequenos detalhes: mães embalando com carinho os filhos em grossas mantas mesmo no verão, e a nossa mania de tentar ajudar aqueles que gostamos ("todo mundo me receitava um remédio, o Brasil é o melhor lugar do mundo para ficar doente").
Regina Braga, 30 anos de carreira e vários prêmios (duas vezes o Molière, 1983 com "Chiquinha Gonzaga", e 1991 por "Uma relação tão delicada"), procurava uma peça que falasse sobre o Brasil e pediu ajuda para Marta Góes. Ela tinha acabado de ler "Poemas do Brasil" de Elizabeth Bishop e se encantava com a poeta que havia morado em Petrópolis (RJ), cidade que ela passou sua infância. As duas, amigas que já trabalharam juntas (Regina dirigiu "Prepare seus pés para o verão", de Marta), decidiram então montar uma peça a partir das cartas e poemas de Bishop que falavam do Brasil. Convidaram para dirigir José Possi Neto ("Emoções Baratas", "Tratar com Murdock").
A peça estreou no Festival de Teatro de Curitiba do ano passado, e Regina Braga já ganhou o prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) por sua atuação, além de Marta Góes ter sido indicada ao Prêmio Shell deste ano.
Todo esse reconhecimento tem motivos de sobra. Regina está radiosa no espetáculo e a delicadeza dos temas impressiona: a relação amorosa que Bishop teve com a arquiteta carioca Lota Macedo Soares é tratada de uma forma muito natural, relatando o convívio das duas, seus sonhos, brigas, preconceitos sofridos; e os caminhos tortos que um artista percorre, vivendo com a solidão e a eterna dúvida da imperfeição, no caso da poeta marcados pelo alcoolismo e a depressão, magnificamente encenados por Regina. Destaque também para o deslumbrante cenário de Jean Pierre Tortill.
Elizabeth Bishop fazia uma viagem de circunavegação pela América em 1951 e desembarcou no porto de Santos para uma escala de poucos dias no Brasil. Visitando Petrópolis, ela comeu o "fruto proibido": provou um caju e teve uma grave intoxicação alérgica. Só que ao invés de ser expulsa do "paraíso", ela foi acolhida nele: se apaixonou por Lota (que cuidou da poeta enquanto ela estava doente) e pelo país, acabou ficando por longos 15 anos. Nesse período sua poesia floresceu, ela ganhou o Prêmio Pulitzer de poesia em 1956.
Uma das mais belas poesias de Bishop, "The Shampoo", fala da paisagem brasileira e dos cabelos de Lota:
"O banho de xampu"
"Os líquens - silenciosas explosões nas pedras - crescem e engordam, concêntricas, cinzentas concussões. Têm um encontro marcado com os halos ao redor da lua, embora até o momento nada tenha mudado.
E, como o céu há de nos dar guarida, enquanto isso não se der, você há de convir, amiga, que se precipitou; e eis no que dá. Porque o Tempo é, mais que tudo, contemporizador.
No teu cabelo negro brilham estrelas cadentes, arredias. Para onde irão elas tão cedo, resolutas?
- Vem, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia amassada e brilhante como a lua."
(Tradução de Paulo Henriques Britto do poema "The Shampoo", publicado em "Poemas do Brasil", Cia. das Letras, 1999)
A atriz Regina Braga concedeu uma entrevista coletiva pouco antes do espetáculo. Leia a seguir alguns trechos:
Pergunta - Quais a sensação de estar encenando pela primeira vez um monólogo?
Regina Braga - Pânico! (risos). Eu sempre fui uma atriz que se apoiou nos companheiros de peça nos momentos de dificuldade. Acho que o que me salvou foi o texto da Marta, é um texto pelo qual as pessoas se interessam, todo mundo fica curioso com a história de uma gringa observando e sentindo o Brasil. E o Possi foi um diretor muito atencioso nos ensaios, alguém que me deu muito carinho.
Pergunta - Comente a direção de José Possi Neto.
Braga - Ele é um diretor muito generoso, um dos poucos que não me machucaram. Porque o início de uma encenação é sempre muito difícil, você se expõe ao ridículo quando começa a ensaiar. O Possi também soube ver o humor da peça, em cenas que a princípio eu não tinha notado.
Bazarcultura - Muitos críticos afirmam que as melhores poesias de Elizabeth Bishop foram escritas no período em que ela viveu no Brasil. Você acha que isso deveu a?
Braga - No início do espetáculo, numa cena que adoro fazer, ela diz que no Brasil "há um excesso de cascatas". Então foi isso, ela se deslumbrou pelo Brasil, primeiro pela paisagem, as cachoeiras de Petrópolis, e depois pelos brasileiros, que deram afeto e cuidados para ela. Bishop era órfã dos pais, sofreu muito, quando ela se viu sendo tocada, cuidada pelos brasileiros, se sentiu muito bem. Como ela diz, sofreu um "choque amoroso". Na peça é nítida a melhora da sua vida quando ela passa a morar no Brasil.
Bazarcultura - Como é interpretar uma personagem tão sensível, e sendo esta uma estrangeira observando o Brasil?
Braga - É ótimo. Eu me sinto muito a vontade para criticar o país, pois interpreto uma estrangeira (risos). Eu adoro fazer.
Bazarcultura - A maior parte do texto da peça é baseado nas cartas que Bishop escreveu para seus amigos. Você já tinha trabalhado com um texto feito de cartas, e como foi o trabalho junto com a Marta Góes na sua elaboração?
Braga - Na verdade, a Marta transformou as cartas em textos dramáticos, são poucos os momentos em que eu declamo as cartas, como quando a Elizabeth escreve uma carta para sua médica, a doutora Anne. A Marta foi escrevendo o texto e me mostrando, outras versões foram surgindo de observações em conjunto nossas. Sabe, o escritor às vezes não percebe a redundância de uma cena, ou como ela poderia ser transformada num gesto, coisa que o ator vê logo.
Pergunta - Como você vê o teatro brasileiro hoje?
Braga - Desde quando comecei vem piorando. O público vem diminuindo. "Uma relação tão delicada", por exemplo, ficou em cartaz por quatro anos. Antigamente, era normal você fazer um espetáculo durante dois anos em São Paulo, um no Rio, e mais um excursionando pelo Interior e outras capitais. O ator não consegue mais viver da bilheteria, precisa de patrocinadores, o que muitas vezes tira a sua liberdade.
(Matéria realizada para o site Bazarcultura)
segunda-feira, 11 de outubro de 2010
Odeio patrão
Ele escreve todo dia uma média de 14 horas. Senta em frente o computador de manhã e só pára de noite. Diz que tira uma dor quando escreve, sente prazer nisso, uma verdadeira terapia. Quando a inspiração não vem, ele se "aquece" ouvindo Lou Reed, lendo seus autores prediletos (Camus, Graciliano, Dostoievski, Henri Miller), se masturbando, enfim, procura a emoção para criar. Fernando Bonassi (1962), depois de muitos livros, roteiros, peças, hoje é um escritor brasileiro que consegue viver de sua arte.
Essa conquista da auto-suficiência ele faz questão de enaltecer, não só por vaidade, mas também porque se sente muito feliz com isso. Bonassi vem de uma família paulistana de classe média-baixa da Mooca, seus pais eram metalúrgicos. Conseguiu passar na USP, fez Cinema na ECA. Seu primeiro curta, "Os circuitos do olhar", é de 1984. Mas ele cismou em tentar mais, queria escrever. Pegou esse gosto lá pelos 14 anos, quando escrevia bilhetes para uma garota que não olhava na sua cara. Não deu certo, os bilhetes não foram entregues, nem nunca se olharam, mas Bonassi seguiu escrevendo. Como muitos escritores, começou com um livro de poesias, "Fibra Ótica" (Massao Ohno Editor, 1987). O segundo, agora de contos, levou muitos não, dez para ser exato, algumas editoras até disseram que ele deveria procurar outra coisa para fazer. Finalmente, em 1989, saiu "O Amor em Chamas" (Estação Liberdade).
Depois, veio o primeiro livro do autor de mais repercussão, o romance "Um céu de estrelas" (Siciliano, 1991), que Tata Amaral adaptou para o cinema em 1995. Ganhou prêmios de melhor filme nos festivais de Biarritiz (França), Brasília e Trieste. A história é uma tragédia da Mooca: o metalúrgico Vítor não aceita o fim do noivado com a cabeleireira Dalva, ambos são cheios de sonhos, mas terminam num violento desespero social e emocional.
Dezesseis livros vieram em seguida, seis destes na literatura infanto-juvenil, que o autor confirma serem seus mais vendidos, como "A incrível história de Naldinho - um bandido ou um anjinho?" (Cosac & Naify, 2001), sobre crianças que acabam no mundo do crime. Por abordar temas assim, sua literatura infantil é dita "violenta", porém Bonassi crê que este é um dos enfoques corretos para as crianças das grandes cidades. "Acho a literatura infantil de hoje muito babaca, sem nada da realidade. Não dá para trabalhar só contos de fadas com crianças que vivem num mundo tão desigual", comenta.
Por outro livro infantil, "Declaração Universal do Moleque Invocado", (Cosac & Naify, 2001), uma subversão bem-humorada da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o autor foi indicado como finalista do Prêmio Jabuti 2002. A cidade de São Paulo, suas ruas, casas, cortiços e pessoas, foram inspiração para outro livro do autor que concorreu ao mesmo prêmio no ano seguinte, agora na categoria Contos e Crônicas por "São Paulo/Brasil" (Dimensão, 2002).
O último livro de Bonassi é "Prova Contrária" (Objetiva, 2003), uma criação que surgiu de uma lei sancionada em 1995 pelo então presidente FHC: o Estado passou a reconhecer como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação, em atividades políticas, no período de 1961 a 1979, bem como assumiu a responsabilidade pelas arbitrariedades cometidas por seus agentes e estabeleceu indenização financeira aos familiares das vítimas. No livro, uma mulher consegue esse dinheiro do governo, já que seu marido sumiu durante a ditadura. Ela compra um apartamento e, justamente no dia da mudança, o esposo reaparece depois de tanto tempo. Ele não dá só uma explicação para isto, mas logo três: ou ele é um fantasma, ou é um traidor da causa revolucionária que resolveu sumir todo esse período, ou é um homem que havia se cansado da relação com a esposa e abandonou-a.
Berlim
Um fato que marcou a obra de Bonassi foi uma bolsa de estudos alemã ganha em 1998. O Kunstlerprogramm do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst) paga aos escritores 2.500 dólares para escrever um livro e banca sua moradia por um ano. Ele adorou viver numa "cidade tão louca como Berlim", e produziu "O Livro da Vida", projeto de contos curtos com mil histórias do mesmo tamanho. Algumas delas já foram publicadas no Brasil: "100 Coisas" (Ed. Angra, 2000) e em "Passaporte" (Cosac & Naify, 2001).
Mas o mais importante dessa temporada alemã é que depois Bonassi decidiu de vez ser um escritor. Ele conta que resolveu abrir mão de alguns confortos materiais e salário burguês, hoje prefere viver modestamente fazendo aquilo que ama, escrever. Tanto que vai abandonar sua coluna "Macho" na Folha de S. Paulo por não se sentir mais feliz com ela. A propósito, declara que o jornalismo e a propaganda são a morte do escritor. "Para falar a verdade, eu odeio patrão", completa.
Leia um dos contos de "100 Coisas":
"Antes de casar, Zeca escolheu muita mulher até escolher Silvia, que engordou. Já Hirani escolheu muito marido até escolher Dario, que bate nela. César escolheu muito amigo até escolher Wilsinho, que o levou à cadeia nuns lances aí. Cristina escolheu várias amigas até escolher Hirani, que roubou seu marido. O marido de Hirani escolheu muitas amantes até se apaixonar por Silvia. Cristina escolheu muitos amores até escolher Wilsinho, que está preso. César escolheu muitos companheiros de cela, até encontrar Genésio, que o fez descobrir um outro lado de si. José Carlos escolheu ser corno."
Faça sua escolha - conto retirado de "100 coisas", de Fernando Bonassi (Angra, 2000)
Aqui e Agora
No Salão de Idéias da II Bienal do Livro de Bauru, o tema proposto para Bonassi foi "Literatura Aqui e Agora", claro, um trocadilho com sua obra tida, às vezes, violenta e o extinto programa mundo cão da TV. Ele não nega totalmente esse título fácil, pois parte de sua obra aborda temas violentos sim, como a participação no roteiro de "Estação Carandiru", de Hector Babenco. Por sinal, um trabalho que Bonassi tem duas visões. A primeira, uma grande experiência pessoal trabalhando no Carandiru durante a roteirização com o próprio Babenco e Victor Navas (por um ano e meio Bonassi ajudou os detentos a escreverem cartas). A segunda, o desagrado com o resultado final, "um filme muito acadêmico, como novela das oito", segundo sua opinião.
Mesmo assim ele exalta o sucesso de obras como "Estação Carandiru", "Os Matadores" (co-roteirização dele também) e "Cidade de Deus". "É uma abertura para os problemas sociais. As pessoas escolheram ver as mazelas nacionais, esse novo governo representa isso", analisa.
Em relação a outros temas, o autor citou seu romance "O amor é uma dor feliz" (Moderna, 1997), uma obra quase autobiográfica narrada por um garoto que cresce num bairro operário decadente, mas que consegue passar no vestibular para cinema e vai estudar na melhor universidade pública do país. "Nesse livro, tudo o que escrevi é verdade, principalmente o que eu inventei", brinca.
Em relação à "Geração 90", um nome inventado pela imprensa para designar os novos escritores que entraram em evidência na última década do século passado, como Marçal Aquino, José Roberto Torero, Marcelo Mirisola, Bonassi opina que é mais reducionista do que fiel à realidade. "Eu, por exemplo, formei minha cabeça durante a década de 70 e comecei a publicar já nos anos 80. É mais um recorte da mídia. Alguns jornalistas e/ou críticos dizem que uma característica que une todos esses escritores é o extremo realismo nos textos, o que não é verdade. 'O fluxo silencioso das máquinas' (Ateliê Editorial, 2002), de Bruno Zeni, para mim o melhor autor da atualidade, não tem nada de realismo. São descrições de rostos dos usuários do metrô", comenta.
E a literatura de Bonassi também não pode ser facilmente inscrita em um estilo. A maneira como ele escreve, muitas vezes sem dar nome aos personagens, pouca descrição, frases curtas, que lembram uma poesia crua, lembra muitas vezes o cinema, ou até letras de músicas. "Gosto dos personagens em ação com uma descrição bem enxuta. Não gosto de narradores oniscientes, não acredito nisso. O leitor é que deve fazer suas escolhas e criar suas opiniões", afirma.
Os próximos planos de Bonassi são um livro infantil, "Declaração Universal da Menina Esquisita", e a participação num projeto editorial que pretende contar várias histórias sobre lugares que estão sumindo em São Paulo, como os parques de diversões, locais que o escritor vai transformar em livro.
Essa conquista da auto-suficiência ele faz questão de enaltecer, não só por vaidade, mas também porque se sente muito feliz com isso. Bonassi vem de uma família paulistana de classe média-baixa da Mooca, seus pais eram metalúrgicos. Conseguiu passar na USP, fez Cinema na ECA. Seu primeiro curta, "Os circuitos do olhar", é de 1984. Mas ele cismou em tentar mais, queria escrever. Pegou esse gosto lá pelos 14 anos, quando escrevia bilhetes para uma garota que não olhava na sua cara. Não deu certo, os bilhetes não foram entregues, nem nunca se olharam, mas Bonassi seguiu escrevendo. Como muitos escritores, começou com um livro de poesias, "Fibra Ótica" (Massao Ohno Editor, 1987). O segundo, agora de contos, levou muitos não, dez para ser exato, algumas editoras até disseram que ele deveria procurar outra coisa para fazer. Finalmente, em 1989, saiu "O Amor em Chamas" (Estação Liberdade).
Depois, veio o primeiro livro do autor de mais repercussão, o romance "Um céu de estrelas" (Siciliano, 1991), que Tata Amaral adaptou para o cinema em 1995. Ganhou prêmios de melhor filme nos festivais de Biarritiz (França), Brasília e Trieste. A história é uma tragédia da Mooca: o metalúrgico Vítor não aceita o fim do noivado com a cabeleireira Dalva, ambos são cheios de sonhos, mas terminam num violento desespero social e emocional.
Dezesseis livros vieram em seguida, seis destes na literatura infanto-juvenil, que o autor confirma serem seus mais vendidos, como "A incrível história de Naldinho - um bandido ou um anjinho?" (Cosac & Naify, 2001), sobre crianças que acabam no mundo do crime. Por abordar temas assim, sua literatura infantil é dita "violenta", porém Bonassi crê que este é um dos enfoques corretos para as crianças das grandes cidades. "Acho a literatura infantil de hoje muito babaca, sem nada da realidade. Não dá para trabalhar só contos de fadas com crianças que vivem num mundo tão desigual", comenta.
Por outro livro infantil, "Declaração Universal do Moleque Invocado", (Cosac & Naify, 2001), uma subversão bem-humorada da Declaração Universal dos Direitos da Criança, o autor foi indicado como finalista do Prêmio Jabuti 2002. A cidade de São Paulo, suas ruas, casas, cortiços e pessoas, foram inspiração para outro livro do autor que concorreu ao mesmo prêmio no ano seguinte, agora na categoria Contos e Crônicas por "São Paulo/Brasil" (Dimensão, 2002).
O último livro de Bonassi é "Prova Contrária" (Objetiva, 2003), uma criação que surgiu de uma lei sancionada em 1995 pelo então presidente FHC: o Estado passou a reconhecer como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação, em atividades políticas, no período de 1961 a 1979, bem como assumiu a responsabilidade pelas arbitrariedades cometidas por seus agentes e estabeleceu indenização financeira aos familiares das vítimas. No livro, uma mulher consegue esse dinheiro do governo, já que seu marido sumiu durante a ditadura. Ela compra um apartamento e, justamente no dia da mudança, o esposo reaparece depois de tanto tempo. Ele não dá só uma explicação para isto, mas logo três: ou ele é um fantasma, ou é um traidor da causa revolucionária que resolveu sumir todo esse período, ou é um homem que havia se cansado da relação com a esposa e abandonou-a.
Berlim
Um fato que marcou a obra de Bonassi foi uma bolsa de estudos alemã ganha em 1998. O Kunstlerprogramm do DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst) paga aos escritores 2.500 dólares para escrever um livro e banca sua moradia por um ano. Ele adorou viver numa "cidade tão louca como Berlim", e produziu "O Livro da Vida", projeto de contos curtos com mil histórias do mesmo tamanho. Algumas delas já foram publicadas no Brasil: "100 Coisas" (Ed. Angra, 2000) e em "Passaporte" (Cosac & Naify, 2001).
Mas o mais importante dessa temporada alemã é que depois Bonassi decidiu de vez ser um escritor. Ele conta que resolveu abrir mão de alguns confortos materiais e salário burguês, hoje prefere viver modestamente fazendo aquilo que ama, escrever. Tanto que vai abandonar sua coluna "Macho" na Folha de S. Paulo por não se sentir mais feliz com ela. A propósito, declara que o jornalismo e a propaganda são a morte do escritor. "Para falar a verdade, eu odeio patrão", completa.
Leia um dos contos de "100 Coisas":
"Antes de casar, Zeca escolheu muita mulher até escolher Silvia, que engordou. Já Hirani escolheu muito marido até escolher Dario, que bate nela. César escolheu muito amigo até escolher Wilsinho, que o levou à cadeia nuns lances aí. Cristina escolheu várias amigas até escolher Hirani, que roubou seu marido. O marido de Hirani escolheu muitas amantes até se apaixonar por Silvia. Cristina escolheu muitos amores até escolher Wilsinho, que está preso. César escolheu muitos companheiros de cela, até encontrar Genésio, que o fez descobrir um outro lado de si. José Carlos escolheu ser corno."
Faça sua escolha - conto retirado de "100 coisas", de Fernando Bonassi (Angra, 2000)
Aqui e Agora
No Salão de Idéias da II Bienal do Livro de Bauru, o tema proposto para Bonassi foi "Literatura Aqui e Agora", claro, um trocadilho com sua obra tida, às vezes, violenta e o extinto programa mundo cão da TV. Ele não nega totalmente esse título fácil, pois parte de sua obra aborda temas violentos sim, como a participação no roteiro de "Estação Carandiru", de Hector Babenco. Por sinal, um trabalho que Bonassi tem duas visões. A primeira, uma grande experiência pessoal trabalhando no Carandiru durante a roteirização com o próprio Babenco e Victor Navas (por um ano e meio Bonassi ajudou os detentos a escreverem cartas). A segunda, o desagrado com o resultado final, "um filme muito acadêmico, como novela das oito", segundo sua opinião.
Mesmo assim ele exalta o sucesso de obras como "Estação Carandiru", "Os Matadores" (co-roteirização dele também) e "Cidade de Deus". "É uma abertura para os problemas sociais. As pessoas escolheram ver as mazelas nacionais, esse novo governo representa isso", analisa.
Em relação a outros temas, o autor citou seu romance "O amor é uma dor feliz" (Moderna, 1997), uma obra quase autobiográfica narrada por um garoto que cresce num bairro operário decadente, mas que consegue passar no vestibular para cinema e vai estudar na melhor universidade pública do país. "Nesse livro, tudo o que escrevi é verdade, principalmente o que eu inventei", brinca.
Em relação à "Geração 90", um nome inventado pela imprensa para designar os novos escritores que entraram em evidência na última década do século passado, como Marçal Aquino, José Roberto Torero, Marcelo Mirisola, Bonassi opina que é mais reducionista do que fiel à realidade. "Eu, por exemplo, formei minha cabeça durante a década de 70 e comecei a publicar já nos anos 80. É mais um recorte da mídia. Alguns jornalistas e/ou críticos dizem que uma característica que une todos esses escritores é o extremo realismo nos textos, o que não é verdade. 'O fluxo silencioso das máquinas' (Ateliê Editorial, 2002), de Bruno Zeni, para mim o melhor autor da atualidade, não tem nada de realismo. São descrições de rostos dos usuários do metrô", comenta.
E a literatura de Bonassi também não pode ser facilmente inscrita em um estilo. A maneira como ele escreve, muitas vezes sem dar nome aos personagens, pouca descrição, frases curtas, que lembram uma poesia crua, lembra muitas vezes o cinema, ou até letras de músicas. "Gosto dos personagens em ação com uma descrição bem enxuta. Não gosto de narradores oniscientes, não acredito nisso. O leitor é que deve fazer suas escolhas e criar suas opiniões", afirma.
Os próximos planos de Bonassi são um livro infantil, "Declaração Universal da Menina Esquisita", e a participação num projeto editorial que pretende contar várias histórias sobre lugares que estão sumindo em São Paulo, como os parques de diversões, locais que o escritor vai transformar em livro.
terça-feira, 5 de outubro de 2010
O fim está no começo e no entanto continua-se
A apresentação da peça "Fim do Jogo" nos dias 26, 27 e 28 de abril no Teatro Municipal de Bauru, teve significados e importâncias muito grandes: foi a primeira apresentação profissional de Edson Celulari na sua terra natal; mostrou mais uma parceria bem-sucedida entre ele e o ótimo ator Cacá Carvalho; o público teve o privilégio de conhecer e se emocionar com um dos melhores textos do dramaturgo irlandês Samuel Beckett; as apresentações marcaram também o final da temporada da peça e o aniversário de dois anos do Teatro Municipal "Celina Lourdes Alves Neves".
Celulari, 43, bauruense, ator de televisão, cinema e teatro, deixou a cidade para seguir sua carreira há 24 anos atrás. Nesse meio tempo, só vinha à Bauru para visitar sua mãe, irmão e tios que permanecem morando na cidade. São 23 anos atuando, trabalhando em peças como "Calígula" (Albert Camus), "Ela odeia mel" (Hamilton Vaz Pereira), "Capital estrangeiro" (Silvio Abreu) e "Fedra" (Racine), os filmes "Asa Branca - um sonho brasileiro" (1980), "Inocência" (1983) e "Ópera do Malandro" (1985); e várias telenovelas: "Guerra dos Sexos", "Cambalacho", "Que Rei Sou Eu?", "Fera Ferida" e "Vila Madalena".
O parceiro de Celulari em o "Fim do Jogo", Carlos Augusto Carvalho, o Cacá, 48, só ficou mais conhecido do grande público em 1998 quando interpretou o personagem Jamanta na telenovela "Torre de Babel", apesar de ser há muito tempo um dos grandes atores do teatro nacional. São 31 anos de palco deste paraense de Belém do Pará, marcados pela excelente atuação na primorosa montagem de "Macunaíma" feita por Antunes Filho em 1978, sucesso no Brasil e em mais de 20 países. Em meados dos anos 80, Carvalho iniciava sua fase de trabalhos na Itália, participando até hoje do Centro de Experimentação e Pesquisa Teatral de Pontedera, onde realizou com o diretor Roberto Bacci elogiadas peças como "O Céu por Terra" e "O Homem com a Flor na Boca".
O primeiro encontro no palco entre Celulari e Carvalho aconteceu em 1985 quando atuaram em "Hamlet", de Shakespeare, com direção de Marcio Aurélio. Depois, voltariam a trabalhar juntos só em 1997 em "Don Juan", de Molière, direção de Moacir Chaves. Para "Fim do Jogo" os atores convidaram o diretor Francisco Medeiros, que em 2000 havia dirigido o monólogo "A Última Gravação de Krapp", também de Beckett, interpretado por Antônio Petrin. A tradução do texto, escrito originalmente em francês, "Fin de partie", foi feita pelo escritor Millôr Fernandes. Completam o elenco os atores Malu Pessin e Lafayette Galvão.
O escritor dos duplos
Em 13 de abril de 1906, uma Sexta-feira Santa, nascia Samuel Barclay Beckett, em Foxrock, perto de Dublin, a capital da Irlanda. Era de uma família burguesa e protestante.
Em 1928, Beckett muda-se para Paris afim de estudar e lecionar literatura. Forma-se em francês e italiano. Conhece o genial James Joyce ("Ulisses", "Finnegans Wake"), do qual se torna amigo, assistente e secretário, inclusive no período de cegueira do escritor. A relação entre os dois, filhos da Irlanda que optaram por morar na França, no início era como pai-filho e mestre-aluno, mas depois se transformaria numa amizade em que cada um se completava, como escreveu um dos mais importantes biógrafos de Joyce, Richard Ellmann:
"Beckett era dado a uns silêncios, e também Joyce; os dois tinham conversas que consistiam muitas vezes de silêncios dirigidos um ao outro, ambos impregnados de tristeza, Beckett sobretudo pelo mundo, Joyce sobretudo por si mesmo. Joyce sentava-se em sua posição habitual, pernas cruzadas, o dedão da perna de cima sob o peito do pé da outra; Beckett, também alto e magro, caía no mesmo gesto. Joyce de repente fazia uma pergunta, tipo 'Como pôde o idealista Hume escrever história?' Beckett respondia: 'Uma história de representações.'"
Outra influência foi o grande escritor francês Marcel Proust ("Em busca do tempo perdido"), ao qual Beckett dedicou uma monografia em 1929. Ainda nesse ano, vence seu primeiro prêmio literário com o poema "Whoroscope". Durante a II Guerra Mundial, ingressa na Resistência Francesa, trabalhando como intérprete num hospital militar. Foi quase pego pela Gestapo nazista.
Após o final da guerra, Beckett adota o francês como seu principal idioma de criação literária, estabelecendo um estilo seco e direto, o mais simples possível. Seus temas, tragicomédias, instauram o riso a partir de situações engraçadas causadas por privações e sofrimentos. Como ele próprio definiu, "meu assunto é o fracasso".
Seus personagens são vagabundos, andarilhos, moribundos, insistindo nos mesmos erros e palavras, como palhaços que reencenam todo o dia a mesma farsa. Só que as repetições de Beckett são analogias da vida: os processos históricos que se assemelham tanto nas suas mentiras, promessas e dúvidas; e as relações humanas, todas elas parecidas em seus momentos de dor, medo e ingenuidade.
Seus principais romances, "Murphy", "Watt", e a trilogia "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável", apresentam a comédia da impotência e ignorância humanas. No teatro a perspectiva é a mesma, porém apresentando mudanças de estilo: através de uma linguagem o mais resumida possível, ele cria situações absurdas e põe em cheque o sentido das palavras e das ações humanas.
Em 1953 surge "Esperando Godot", com os dois vagabundos Vladimir e Estragon. No ano de 1956, "Fim do Jogo", com o pai/patrão/mestre Hamm e o filho/empregado/aprendiz Clov. Seguem-se "A Última Gravação de Krapp", 1958, com o jovem e velho Krapp, e "Dias Felizes", de 1961, com a personagem Winnie sendo enterrada à medida que relembra seus momentos com o marido.
São todas peças lúdicas no sentido de sempre apresentarem pares e repetição de frases e gestos. É o viver todos os dias a mesma rotina e tendo a consciência disso, mas sem nenhuma força ou coragem para mudar. Beckett ironiza isso - a mãe de Hamm, Nell, fala em o "Fim do Jogo" que "Nada é mais é engraçado que a infelicidade".
Nas falas de Hamm e Clov, não há um sentido, ou melhor, o autor põe em dúvida a existência numa proporção tamanha que faz sobrar apenas o ridículo:
Já me fez essa pergunta milhões de vezes./ Gosto de velhas perguntas. Ah, velhas perguntas, velhas respostas, não há nada como elas".
(trecho retirado de "Fim de Partida", tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade, Cosac & Naify, 2002)
Seus textos trazem cenários enclausuradores, com pouca luz ou cinzenta, sem móveis. Não coincidentemente, Beckett era afeito ao alcoolismo e vítima de fortes depressões. Sua morte foi às vésperas do Natal de 1989, em 22 de dezembro. Antes, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1969.
"Fim do jogo"
Num lugar esquecido, vivem um cego paralítico numa cadeira de rodas (Hamm), seu empregado manco, que enxerga mal e não consegue mais se sentar (Clov, ou Clóvis na tradução de Millôr Fernandes), e os pais do cego (Nagg e Nell), com as pernas amputadas e morando em latas de lixo.
Nesse lugar mórbido, todos justamente esperam a morte, nutrindo entre si uma dependência psicológica - ambos se ofendem, mas precisam estar juntos. Na montagem que apresentada em Bauru, Edson Celulari e Cacá Carvalho revezam as interpretações dos personagens Hamm e Clóvis. O casal de velhos é feito pelos atores Lafaytte Galvão e Malu Pessin.
A proposta de trocar os papéis principais nas apresentações é bem interessante, pois a própria peça estabelece esse jogo - Hamm não é sempre o explorador que humilha seu empregado Clóvis, este também martiriza seu patrão.
Viu-se uma grande adaptação do texto de Beckett. Merecem elogios Galvão e Pessin por suas comoventes e cruéis representações dos velhos. Celulari e Carvalho optaram por realizar seus papéis de forma "clownesca", exagerando propositadamente nos trejeitos e falas. Essa opção se mostra um pouco perigosa, pois a peça apresenta variantes e sutilezas trágicas. Talvez essa forma de atuar fosse mais adequada para "Esperando Godot", por exemplo, em que os dois personagens principais agem como verdadeiros palhaços. Todavia, só em alguns momentos a representação de Hamm e Clóvis foi prejudicada, ocasiões em que a voz esganiçada ou gesto espalhafatoso dos atores se sobressaíram aos absurdos retratados. Beckett é muito complexo por isso, sua montagem exige um grande equilíbrio entre o humor no texto e o apresentado pela atuação do ator.
Muitas são as analogias de "Fim do Jogo": relação mestre e empregado, pais e filhos, o flagelo da guerra etc. Beckett dizia que pensou em movimentos do jogo de xadrez - Hamm, representando o rei no centro do palco, se movimenta movido pelo peão Clóvis, ou o rei ordenando o movimento do peão. Shakespeare também pode ser visto na peça: sentado em sua cadeira, cego e parado, Hamm remete ao Rei Lear ou a Hamlet em seus tronos, todos reis decadentes.
Uma alegoria final, essa construída, foi a estréia do espetáculo na cidade natal de Cacá Carvalho, Belém do Pará, e seu encerramento na cidade onde Celulari nasceu, Bauru. Como diz Hamm na peça, "O fim está no começo e no entanto continua-se". O fim e o início são os mesmos na comédia da vida.
O Bazarcultura participou da entrevista coletiva com os atores Edson Celulari e Cacá Carvalho, que você confere abaixo:
Pergunta - Como você está vendo Bauru hoje, depois de todo esse tempo fora?
Edson Celulari - Eu fico muito orgulhoso quando ouço dos meus amigos que já passaram por aqui, que a cidade tem um lindo teatro, uma platéia inteligente, interessada. Saber também que hoje existem 15 grupos de teatro atuantes. Então você nota a cidade modificada. Não sei se isto já está refletindo, mas acho que o hábito de ir no teatro cria uma onda de pensar, entender melhor as coisas. Acho que sempre deve haver uma preocupação para melhorar isso, porque o público que vai ao teatro pensa e sente tudo melhor. Uma cidade que cresce tem que se preocupar com a cultura, não existe uma cidade economicamente forte e culturalmente fraca. É importante também a expressão local, peças e autores da cidade falando de questões daqui.
Pergunta - Falem um pouco desse projeto "Fim do Jogo".
Celulari - É um projeto também afetivo nosso, estreamos em Belém e estamos finalizando aqui em Bauru. Tivemos o orgulho de começar na cidade do Cacá e terminar em Bauru, uma local bem mais jovem e iniciando sua vida com esse novo espaço, o Teatro e o Centro Cultural.
Cacá Carvalho - Mas é muito doida essa coisa de um espetáculo que cumpre o seu ciclo de apresentação, porque o teatro tem tantos estágios. O estágio em que você fica elaborando o projeto, você já está fazendo o espetáculo, é uma fase dele. E depois surgem diversas outras fases, e no nosso caso milhões delas, porque além de apresentar, nos desdobramos diariamente, então ele se multiplica. Ao acabar a fase de exposição, o espetáculo continua, ele vai passar a acontecer internamente, na medida em que a saudade se manifesta, e em que você vai refletir sobre ele, principalmente quando é um texto que tem um valor de analogia e metáfora tão grandes. Então, na realidade ele cumpre uma fase de exposição pública e aí passa a agir dentro de cada um de nós, como agiu em cada um espectador que passou por ele em Belém do Pará.
Por isso que o teatro não morre. Pode ser que o nosso trabalho tenha provocado em alguém o interesse em comprar o livro do Beckett, então nosso trabalho não morreu, continua lá na estante da pessoa, ou talvez alguém conte a história para outra pessoa, continua frutificando.
Sobre o espetáculo estar encerrando a apresentação aqui, quando estreou em Belém decidimos terminar aqui. Tem um sentido muito bom estar aqui, para mim é muito emocionante estar no lugar onde o Edson Celulari nasceu e começou fazer sua história de teatro, isso é muito bonito. Quando você volta à casa, por mais que você diga que não a reconhece direito, tem uma coisa que está debaixo de tanta camada de progresso, de tempo que passa, que você reconhece no cheiro, no calor dela, na cor da terra dela. Têm muitas cidades invisíveis atrás dessa cidade visível, que ele vê e eu não vejo, então é bonito ver através do modo que ele vê a cidade dele.
Pergunta - Qual é o jogo que termina na peça?
Carvalho - Por analogia se pode achar que é o fim do jogo da vida, fim do jogo das relações dentro da peça. Mas por uma analogia maior, partindo de que um dos personagens diz que não enxerga (Hamm), outro dizer que não pode se sentar (Clóvis), e dois que dizem que perderam as pernas e por isso estão em latas de lixo (Nagg e Nell), você passa a supor que a pessoa que detém o poder na encenação, que está no centro, e não enxerga e não caminha, representa que o poder está no centro, cego e paralítico. Este personagem é assessorado pelo que não senta, enxerga e anda mal, ou seja, está no caminho de também ficar cego e paralítico. Os pais do poder já estão no lixo, como o fim de todos nós. A partir desta situação, você pode fazer uma reflexão maior sobre a condição humana, isto é, uma "situação dramática" que tem uma leitura pesada. Você pode lê-la assim, porém o Beckett coloca uma veste "clownesca", e nós assumimos isso. É como se essa comédia "clownesca" fosse uma cortina que te possibilita ver a realidade de um modo não simplesmente nu e cru, porque isso seria somente sublinhar o que já está vermelho em letras garrafais. Assim, o fim do jogo na realidade é mais uma charada que você decifra como ela te interessa: você dizer que não entendeu, dizer que é uma reflexão sobre o poder, ou dizer simplesmente que é uma situação dramática cômica que no final fica um pouquinho pesada.
Com relação ao projeto, ele nasceu com a estréia em Belém do Pará e o fim do jogo da vida dele é em Bauru, são duas pontas como se você caminhasse de um lugar para outro. Durante o nosso período de trabalho, o diretor sempre falava no ensaios, "é o fim, mas o fim é cheio de vida", e nós chegamos ao fim da vida desse espetáculo cheios de vida. Não é que ele morre, ele concluí uma fase que é a de apresentação, mas eu tenho certeza que o fim do jogo permanecerá dentro de todas as pessoas que estiveram envolvidas nesse trabalho, porque ele ecoa dentro de todos nós e vai continuar.
Pergunta - Como é essa experiência de troca de personagens entre vocês dois?
Carvalho - Ele é quem gosta desse troca-troca (risos).
Celulari - É extremamente estimulante (mais risos). Nós começamos a ensaiar o espetáculo sem saber o que iríamos fazer, na verdade. Durante dois meses nós fizemos assim, até que o Chiquinho (o diretor Francisco Medeiros) propôs que nós fizéssemos isso também no palco. Está sendo muito interessante, mas deu um medo danado porque isso é muito difícil neste tipo de espetáculo, onde estes dois personagens têm uma espécie de código de dramaturgia muito rápido, ágil, em que às vezes ficamos atrapalhados com o próprio texto. Então, isso nós provoca risos internos, que a platéia não participa muito porque desconcentra, mas que é uma delícia. Faz parte do tal do jogo a troca, a exposição ao erro e brincar com isso, aonde fica claro que a camisa não importa, a ação do jogo é o que interessa. Numa partida de futebol, por exemplo, os centroavantes de equipes opostas trocam as camisas e o jogo continua. É muito estimulante, a gente se permite o assalto ao trabalho do outro, dos gestos, e também vários pontos escondidos, porque um personagem é cego e a gente o faz de olho fechado, então o personagem que está de pé e enxerga leva vantagem sobre o outro.
E para o espectador, mesmo para aquele que não possa assistir duas vezes o espetáculo e não veja a alternância de atuações, mesmo assistindo uma das versões ele imagina a outra, o que também é muito estimulante. É a mesma coisa vista de outro ângulo, então, na verdade, é uma outra coisa.
Pergunta - Quando Beckett escreveu suas peças do teatro do absurdo havia um certo estranhamento de crítica e público quando o espetáculo era encenado. Hoje, seus textos são super aplaudidos pela crítica teatral e literária mundial, mas você acha que o público já recebe de uma forma melhor?
Celulari - Acho que Beckett nunca vai ser popular.
Bazarcultura - Mas no seu caso há um chamariz muito forte que são os trabalhos que você fez na TV. Como esse grande público que assiste você nas novelas tem recebido a peça?
Celulari - A primeira coisa é o seguinte, se o produto não for bom, pode ser Shakespeare, pode ser ator shakespeariano, global ou ator internacional, se o produto não for bom não adianta. Posso te dar quinhentos exemplos de colegas no auge do sucesso, em teatros com preços populares, que não tiveram bons resultados finais e fracassaram. Como eu já disse, o Beckett não vai ser popular nunca, mas se tornou um clássico, já sobrevive a mais de 50 anos, e hoje, para se ter uma idéia, existem cerca de 80 espetáculos dele sendo encenados pelo mundo. Há interesse pelo Beckett então, entretanto não é o mesmo interesse do público de televisão, mas seja qual for o motivo que leve o cidadão ao teatro, seja o nome de um ator ou ator conhecido, seja porque existe um filho ou primo seu representando, enfim, o mais importante é ir, porque o que o espectador vai ver será teatro, e se não for bem feito ele não vai gostar. Então, o melhor divulgador do espetáculo é o boca-a-boca, é quem vê. O Cacá tem uma frase que é ótima, que "teatro é um shopping", no qual você deve apresentar os mais diversos produtos.
Bazarcultura - Falando nisso, o espetáculo de vocês passou mesmo por um shopping em São Paulo (Teatro Folha no Shopping Pátio Higienópolis).
Celulari - É, por exemplo, era lá um produto (riso amarelo). Também nos fizemos juntos Molière, um outro tipo de público, agora, é um outro produto, é o Beckett. Tem que haver a comédia, tem que haver a tragédia, tem que haver o teatro do absurdo, experimental, baudeville, musical, tem que ter de tudo. Aí você pode dizer assim, "vamos fazer só o que o público quer", então o ator global só vai fazer isso. Isso não existe, eu não quero, paro minha carreira se tiver que fazer só aquilo que o público espera de mim. Mas acho que já aprenderam, com os últimos anos, que eu gosto de fazer umas coisas meio estranhas, então se é bem feito o cara vai lá me ver. Estar fazendo o Beckett é da maior importância para a gente, é por que isso fazemos. Agora, que isso seja tão simples quanto fazer uma comédia popular, é claro que não é. Mas há público, porque apresentamos o espetáculo de uma maneira clownesca, direta, não elaboramos dando esta suposta importância ao Beckett, a gente não ficou tentando dar a "pausa beckettiana", "o silêncio beckettiano", a gente quer é comunicar porque esse texto é importante para as pessoas de hoje, quem paga o ingresso tem que entender alguma coisa. Seja o que for que a pessoa entender, a comunicação desse texto para nós só tem razão se for direta, sem adaptação, é o texto integral.
Carvalho - Acho que o teatro tem pensar a cultura trazendo para a população alimento de toda e qualquer natureza, por outro lado, essa colocação de que o Beckett é um autor denso, ou como o público vai reagir com isso, em parte tem fundamento mas é uma colocação perigosa também, vindo da imprensa e de um determinado tipo de intelectualidade que faz essa afirmativa porque pode estar subestimando a capacidade de inteligência e emoção daqueles que vão assistir o espetáculo, é reduzir a capacidade deles, e isso é péssimo.
Por outro lado, para o espectador acostumado com a Tanajura na novela das oito, com a cultura direta que invade as casas via TV, ou pode-se dizer uma sub-cultura, enfim, se você só dá esse tipo de opção, você continua alimentando o sono das pessoas, e isso é delicadíssimo. Então, é muito bonito quando você vê uma pessoa com uma bagagem, com uma capacidade de tocar um projeto muito mais de outra natureza, optar por fazer o Beckett, optar por fazer Don Juan do Molière. Através desse tipo de ação, você lê um tipo de coisa que não é o usar aquilo que se conquistou com uma exposição do seu trabalho, é levar outro tipo de alimento para as pessoas, nesse sentido com uma função importantíssima. Nesse caso, pode ser que esse tipo de atrativo, ou seja, o histórico do Edson, do Cacá, da Malu, do Lafayette, do Beckett, leve um outro tipo de público que possa beber de um outro tipo de espetáculo que normalmente não é oferecido.
Celulari - Só queria fazer um aparte nisso. Muitas vezes eu ouvi desse público de televisão, após o espetáculo, coisas emocionantes, como "eu nunca tinha vindo ao teatro, eu acompanho seu trabalho na televisão, te curto, peguei minha esposa e vim ao teatro, e ela também pela primeira vez, mas se eu soubesse que o teatro era isso, eu teria vindo muito antes". Bacana, não?
Carvalho - E outros podem também não entender, mas não importa, uma parte repercute, ecoará numa próxima vez que voltarem ao teatro. Nós vivemos dormindo, estamos acostumados, todo dia tomamos Lexotan através da televisão, da informação, ou seja, vamos criando um mundo absurdo. É importante que de vez em quando alguém diga "ahnn" (faz um gesto de sacudir), aí você acorda no outro dia do mesmo jeito e recebe outro "ahnn" (o mesmo gesto), até que talvez chegue uma hora que você acorde mesmo. Essa é a tragédia do viver.
Pergunta - Por que vocês escolheram esse texto?
Carvalho - Porque eu acredito ser importante que de vez em quando alguém diga "ahnn" para ver se alguém acorda (risos).
Celulari - Estreamos no dia 4, 5 de setembro o espetáculo em Belém, e dia 11 as torres caíram, foi um fim de um jogo. O ACM cai, sai do Senado, o fim de outro tipo de jogo. Você pode associar muito.
Carvalho - Sempre existe algum poder que está no centro e seu jogo vai terminando. É preciso renovar as cartas e o jogadores.
Celulari - Na Argentina agora, coitados, estão vivendo isso.
Carvalho - Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa está seguindo seu caminho. Inexoravelmente vai acabar. Você pode dizer, são só outros jogadores, porém terrivelmente talvez faça parte da condição humana subverter as regras do jogo para se levar vantagem, se criará um jogo viciado novamente. Talvez faça parte desse ciclo. Assim, que sentido tem isso tudo? No fim, talvez a gente olhe para trás e diga: talvez isso tudo tenha sido para nada. E será péssimo. Por isso, tenho que valorizar cada minuto, eu não posso estar dormindo, tenho que ficar acordado.
Bazarcultura - A partir de Hamm, a figura principal no texto, podem ser feitas duas associações com seu nome: o "ham actor", que em inglês significa canastrão, e uma referência a Hamlet, um dos personagens mais importantes da história do teatro. Esse jogo de palavras é intencional, pois o Hamm tem essas duas facetas na peça. Como é o desafio de interpretar Hamm, alguém que navega entre o egocentrismo tolo e a plena consciência da existência humana?
Celulari - Na verdade não existe um personagem principal na peça, existe aquele que está no centro no palco, e isto não quer dizer que ele esteja mesmo, pois ele é cego. Todo o tempo ele pergunta, "estou no centro?", e o outro diz que sim, mas como ele pode ter certeza que sim? E essa mutação faz parte do "clownesco". O centro é quem mais enxerga. Aquele que está assistenciando, o aprendiz, quer ir embora o tempo todo, repete "eu vou te deixar, eu vou te deixar", mas não consegue porque talvez exista um interesse dele estar no centro. Então, essas impossibilidades, essa aproximação do fim, essa consciência, essa crueldade desse tal destino de um nada para um nada, vai dando ao Hamm uma plenitude que o faz jogar tudo para o ar mesmo. Essas mutações são referentes a este jogo que ele mantém com o Clóvis, e ao contrário também, pois o Clóvis tem um momento no qual toma as rédeas do jogo. Procuramos, nessa versão mais "clownesca", acentuar isso como um jogo cênico, um jogo de pegada, estimulante também para o espectador, e não apenas intelectualmente. Só um se mexe, dois estão na lata de lixo sem pernas, e outro está cego e paralítico na cadeira de rodas. Então quando o Hamm pede, "dá uma voltinha comigo!", aquele bloco vai se mexer, o centro vai mudar de lugar, e uma volta, mesmo naquele espaço mínimo no palco, é uma volta ao mundo, ao mundo deles. E existem dois espaços, dois olhos, que são duas janelas, aonde se vê o lá fora.
Carvalho - E lá fora está tudo chumbo, como Bauru (risos).
Celulari - Uma janela você vê o mar, a outra a terra. Toda a hora o cego quer saber, "como é que está lá fora?" - "Zero, Zero e Zero".
Carvalho - "As ondas chumbo" (risos).
Celulari - Tá feia a coisa lá fora! "E no horizonte? Nada no horizonte?"
Carvalho - "O que poderia haver no horizonte para a gente ver?"
Pergunta - Quais os projetos futuros de vocês, depois de encerrar a peça aqui em Bauru?
Celulari - Eu vou descansar algumas semanas e devo estar fazendo uma novela na Globo no segundo semestre. Gostaria de tocar um projeto de cinema, tenho três convites - no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais - um deles vou tentar fazer nesse intervalo. Fiz poucos mas bons filmes, e já faz algum tempo que eu não participo.
Carvalho - Vou fazer agora o espetáculo "O Homem com a Flor na Boca", faço uma curta temporada em Ribeirão Preto, e vou dia 20 de maio para a Itália. Ao voltar, no fim de junho, vou direto para Belém dirigir uma montagem de Hamlet. Depois, em setembro, um espetáculo que eu fiz assistência de direção na Itália, vem para o Brasil abrindo o Festival de Teatro de Porto Alegre.
Pergunta - Vão voltar a encenar o Beckett?
Carvalho - Eu penso em trabalhar de novo com o Beckett, penso muito também trabalhar com Pirandello, que eu tenho grande paixão, esses autores que tocam alguma coisa que não seja simplesmente um discurso, Calvino, por exemplo.
Pergunta - O que vocês acham que Beckett deixa ou ensina hoje?
Celulari - Para mim, eu acho que é ver as coisas, os modos, enfim, pensar sobre aquilo que você vive, faz, se relaciona. A peça, se você ver "Esperando Godot", "A Última Gravação", "Dias Felizes", "Fim do Jogo", são sobre o mesmo tema, tudo a mesma coisa. Ele insiste, insiste, e é como se focasse e focasse, e sobrasse o humano, cheio de sujeiras e besteiras, quantas vezes risíveis. É por isso que o espetáculo tem esse filão do riso presente. Quando o Beckett dirigia suas próprias peças, e passava por países que não conhecia a cultura ou que não havia morado, ele chamava um comediante para assistir um ensaio e saber se naquela tradução, ou na maneira como estava sendo encenada uma cena em particular que deveria resultar em humor, seria mesmo entendida como humor, era importante o humor. A exposição do humano risível. Então, eu acho que a genialidade dele, que o transformou já em um autor clássico em tão poucos anos, é o que ele vale nessa essência, com olhos tão agudos, tão cruéis, duros, verdadeiros, ele conseguiu ver e aprofundar coisas que muitos autores abordaram, mas ele fez de uma maneira que o torna único.
Carvalho - O Beckett é um grande cirurgião da cegueira geral, ele nós faz enxergar, rindo, refletindo, cheio de poesia, crueza, trapalhada. Através de situações absurdas, ele te contextualiza, te faz enxergar de um modo cheio de inteligência. Os grandes autores só se tornam grandes porque só colocam a condição humana.
(Matéria realizada para o site Bazarcultura)
Celulari, 43, bauruense, ator de televisão, cinema e teatro, deixou a cidade para seguir sua carreira há 24 anos atrás. Nesse meio tempo, só vinha à Bauru para visitar sua mãe, irmão e tios que permanecem morando na cidade. São 23 anos atuando, trabalhando em peças como "Calígula" (Albert Camus), "Ela odeia mel" (Hamilton Vaz Pereira), "Capital estrangeiro" (Silvio Abreu) e "Fedra" (Racine), os filmes "Asa Branca - um sonho brasileiro" (1980), "Inocência" (1983) e "Ópera do Malandro" (1985); e várias telenovelas: "Guerra dos Sexos", "Cambalacho", "Que Rei Sou Eu?", "Fera Ferida" e "Vila Madalena".
O parceiro de Celulari em o "Fim do Jogo", Carlos Augusto Carvalho, o Cacá, 48, só ficou mais conhecido do grande público em 1998 quando interpretou o personagem Jamanta na telenovela "Torre de Babel", apesar de ser há muito tempo um dos grandes atores do teatro nacional. São 31 anos de palco deste paraense de Belém do Pará, marcados pela excelente atuação na primorosa montagem de "Macunaíma" feita por Antunes Filho em 1978, sucesso no Brasil e em mais de 20 países. Em meados dos anos 80, Carvalho iniciava sua fase de trabalhos na Itália, participando até hoje do Centro de Experimentação e Pesquisa Teatral de Pontedera, onde realizou com o diretor Roberto Bacci elogiadas peças como "O Céu por Terra" e "O Homem com a Flor na Boca".
O primeiro encontro no palco entre Celulari e Carvalho aconteceu em 1985 quando atuaram em "Hamlet", de Shakespeare, com direção de Marcio Aurélio. Depois, voltariam a trabalhar juntos só em 1997 em "Don Juan", de Molière, direção de Moacir Chaves. Para "Fim do Jogo" os atores convidaram o diretor Francisco Medeiros, que em 2000 havia dirigido o monólogo "A Última Gravação de Krapp", também de Beckett, interpretado por Antônio Petrin. A tradução do texto, escrito originalmente em francês, "Fin de partie", foi feita pelo escritor Millôr Fernandes. Completam o elenco os atores Malu Pessin e Lafayette Galvão.
O escritor dos duplos
Em 13 de abril de 1906, uma Sexta-feira Santa, nascia Samuel Barclay Beckett, em Foxrock, perto de Dublin, a capital da Irlanda. Era de uma família burguesa e protestante.
Em 1928, Beckett muda-se para Paris afim de estudar e lecionar literatura. Forma-se em francês e italiano. Conhece o genial James Joyce ("Ulisses", "Finnegans Wake"), do qual se torna amigo, assistente e secretário, inclusive no período de cegueira do escritor. A relação entre os dois, filhos da Irlanda que optaram por morar na França, no início era como pai-filho e mestre-aluno, mas depois se transformaria numa amizade em que cada um se completava, como escreveu um dos mais importantes biógrafos de Joyce, Richard Ellmann:
"Beckett era dado a uns silêncios, e também Joyce; os dois tinham conversas que consistiam muitas vezes de silêncios dirigidos um ao outro, ambos impregnados de tristeza, Beckett sobretudo pelo mundo, Joyce sobretudo por si mesmo. Joyce sentava-se em sua posição habitual, pernas cruzadas, o dedão da perna de cima sob o peito do pé da outra; Beckett, também alto e magro, caía no mesmo gesto. Joyce de repente fazia uma pergunta, tipo 'Como pôde o idealista Hume escrever história?' Beckett respondia: 'Uma história de representações.'"
Outra influência foi o grande escritor francês Marcel Proust ("Em busca do tempo perdido"), ao qual Beckett dedicou uma monografia em 1929. Ainda nesse ano, vence seu primeiro prêmio literário com o poema "Whoroscope". Durante a II Guerra Mundial, ingressa na Resistência Francesa, trabalhando como intérprete num hospital militar. Foi quase pego pela Gestapo nazista.
Após o final da guerra, Beckett adota o francês como seu principal idioma de criação literária, estabelecendo um estilo seco e direto, o mais simples possível. Seus temas, tragicomédias, instauram o riso a partir de situações engraçadas causadas por privações e sofrimentos. Como ele próprio definiu, "meu assunto é o fracasso".
Seus personagens são vagabundos, andarilhos, moribundos, insistindo nos mesmos erros e palavras, como palhaços que reencenam todo o dia a mesma farsa. Só que as repetições de Beckett são analogias da vida: os processos históricos que se assemelham tanto nas suas mentiras, promessas e dúvidas; e as relações humanas, todas elas parecidas em seus momentos de dor, medo e ingenuidade.
Seus principais romances, "Murphy", "Watt", e a trilogia "Molloy", "Malone Morre" e "O Inominável", apresentam a comédia da impotência e ignorância humanas. No teatro a perspectiva é a mesma, porém apresentando mudanças de estilo: através de uma linguagem o mais resumida possível, ele cria situações absurdas e põe em cheque o sentido das palavras e das ações humanas.
Em 1953 surge "Esperando Godot", com os dois vagabundos Vladimir e Estragon. No ano de 1956, "Fim do Jogo", com o pai/patrão/mestre Hamm e o filho/empregado/aprendiz Clov. Seguem-se "A Última Gravação de Krapp", 1958, com o jovem e velho Krapp, e "Dias Felizes", de 1961, com a personagem Winnie sendo enterrada à medida que relembra seus momentos com o marido.
São todas peças lúdicas no sentido de sempre apresentarem pares e repetição de frases e gestos. É o viver todos os dias a mesma rotina e tendo a consciência disso, mas sem nenhuma força ou coragem para mudar. Beckett ironiza isso - a mãe de Hamm, Nell, fala em o "Fim do Jogo" que "Nada é mais é engraçado que a infelicidade".
Nas falas de Hamm e Clov, não há um sentido, ou melhor, o autor põe em dúvida a existência numa proporção tamanha que faz sobrar apenas o ridículo:
Já me fez essa pergunta milhões de vezes./ Gosto de velhas perguntas. Ah, velhas perguntas, velhas respostas, não há nada como elas".
(trecho retirado de "Fim de Partida", tradução e apresentação de Fábio de Souza Andrade, Cosac & Naify, 2002)
Seus textos trazem cenários enclausuradores, com pouca luz ou cinzenta, sem móveis. Não coincidentemente, Beckett era afeito ao alcoolismo e vítima de fortes depressões. Sua morte foi às vésperas do Natal de 1989, em 22 de dezembro. Antes, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1969.
"Fim do jogo"
Num lugar esquecido, vivem um cego paralítico numa cadeira de rodas (Hamm), seu empregado manco, que enxerga mal e não consegue mais se sentar (Clov, ou Clóvis na tradução de Millôr Fernandes), e os pais do cego (Nagg e Nell), com as pernas amputadas e morando em latas de lixo.
Nesse lugar mórbido, todos justamente esperam a morte, nutrindo entre si uma dependência psicológica - ambos se ofendem, mas precisam estar juntos. Na montagem que apresentada em Bauru, Edson Celulari e Cacá Carvalho revezam as interpretações dos personagens Hamm e Clóvis. O casal de velhos é feito pelos atores Lafaytte Galvão e Malu Pessin.
A proposta de trocar os papéis principais nas apresentações é bem interessante, pois a própria peça estabelece esse jogo - Hamm não é sempre o explorador que humilha seu empregado Clóvis, este também martiriza seu patrão.
Viu-se uma grande adaptação do texto de Beckett. Merecem elogios Galvão e Pessin por suas comoventes e cruéis representações dos velhos. Celulari e Carvalho optaram por realizar seus papéis de forma "clownesca", exagerando propositadamente nos trejeitos e falas. Essa opção se mostra um pouco perigosa, pois a peça apresenta variantes e sutilezas trágicas. Talvez essa forma de atuar fosse mais adequada para "Esperando Godot", por exemplo, em que os dois personagens principais agem como verdadeiros palhaços. Todavia, só em alguns momentos a representação de Hamm e Clóvis foi prejudicada, ocasiões em que a voz esganiçada ou gesto espalhafatoso dos atores se sobressaíram aos absurdos retratados. Beckett é muito complexo por isso, sua montagem exige um grande equilíbrio entre o humor no texto e o apresentado pela atuação do ator.
Muitas são as analogias de "Fim do Jogo": relação mestre e empregado, pais e filhos, o flagelo da guerra etc. Beckett dizia que pensou em movimentos do jogo de xadrez - Hamm, representando o rei no centro do palco, se movimenta movido pelo peão Clóvis, ou o rei ordenando o movimento do peão. Shakespeare também pode ser visto na peça: sentado em sua cadeira, cego e parado, Hamm remete ao Rei Lear ou a Hamlet em seus tronos, todos reis decadentes.
Uma alegoria final, essa construída, foi a estréia do espetáculo na cidade natal de Cacá Carvalho, Belém do Pará, e seu encerramento na cidade onde Celulari nasceu, Bauru. Como diz Hamm na peça, "O fim está no começo e no entanto continua-se". O fim e o início são os mesmos na comédia da vida.
O Bazarcultura participou da entrevista coletiva com os atores Edson Celulari e Cacá Carvalho, que você confere abaixo:
Pergunta - Como você está vendo Bauru hoje, depois de todo esse tempo fora?
Edson Celulari - Eu fico muito orgulhoso quando ouço dos meus amigos que já passaram por aqui, que a cidade tem um lindo teatro, uma platéia inteligente, interessada. Saber também que hoje existem 15 grupos de teatro atuantes. Então você nota a cidade modificada. Não sei se isto já está refletindo, mas acho que o hábito de ir no teatro cria uma onda de pensar, entender melhor as coisas. Acho que sempre deve haver uma preocupação para melhorar isso, porque o público que vai ao teatro pensa e sente tudo melhor. Uma cidade que cresce tem que se preocupar com a cultura, não existe uma cidade economicamente forte e culturalmente fraca. É importante também a expressão local, peças e autores da cidade falando de questões daqui.
Pergunta - Falem um pouco desse projeto "Fim do Jogo".
Celulari - É um projeto também afetivo nosso, estreamos em Belém e estamos finalizando aqui em Bauru. Tivemos o orgulho de começar na cidade do Cacá e terminar em Bauru, uma local bem mais jovem e iniciando sua vida com esse novo espaço, o Teatro e o Centro Cultural.
Cacá Carvalho - Mas é muito doida essa coisa de um espetáculo que cumpre o seu ciclo de apresentação, porque o teatro tem tantos estágios. O estágio em que você fica elaborando o projeto, você já está fazendo o espetáculo, é uma fase dele. E depois surgem diversas outras fases, e no nosso caso milhões delas, porque além de apresentar, nos desdobramos diariamente, então ele se multiplica. Ao acabar a fase de exposição, o espetáculo continua, ele vai passar a acontecer internamente, na medida em que a saudade se manifesta, e em que você vai refletir sobre ele, principalmente quando é um texto que tem um valor de analogia e metáfora tão grandes. Então, na realidade ele cumpre uma fase de exposição pública e aí passa a agir dentro de cada um de nós, como agiu em cada um espectador que passou por ele em Belém do Pará.
Por isso que o teatro não morre. Pode ser que o nosso trabalho tenha provocado em alguém o interesse em comprar o livro do Beckett, então nosso trabalho não morreu, continua lá na estante da pessoa, ou talvez alguém conte a história para outra pessoa, continua frutificando.
Sobre o espetáculo estar encerrando a apresentação aqui, quando estreou em Belém decidimos terminar aqui. Tem um sentido muito bom estar aqui, para mim é muito emocionante estar no lugar onde o Edson Celulari nasceu e começou fazer sua história de teatro, isso é muito bonito. Quando você volta à casa, por mais que você diga que não a reconhece direito, tem uma coisa que está debaixo de tanta camada de progresso, de tempo que passa, que você reconhece no cheiro, no calor dela, na cor da terra dela. Têm muitas cidades invisíveis atrás dessa cidade visível, que ele vê e eu não vejo, então é bonito ver através do modo que ele vê a cidade dele.
Pergunta - Qual é o jogo que termina na peça?
Carvalho - Por analogia se pode achar que é o fim do jogo da vida, fim do jogo das relações dentro da peça. Mas por uma analogia maior, partindo de que um dos personagens diz que não enxerga (Hamm), outro dizer que não pode se sentar (Clóvis), e dois que dizem que perderam as pernas e por isso estão em latas de lixo (Nagg e Nell), você passa a supor que a pessoa que detém o poder na encenação, que está no centro, e não enxerga e não caminha, representa que o poder está no centro, cego e paralítico. Este personagem é assessorado pelo que não senta, enxerga e anda mal, ou seja, está no caminho de também ficar cego e paralítico. Os pais do poder já estão no lixo, como o fim de todos nós. A partir desta situação, você pode fazer uma reflexão maior sobre a condição humana, isto é, uma "situação dramática" que tem uma leitura pesada. Você pode lê-la assim, porém o Beckett coloca uma veste "clownesca", e nós assumimos isso. É como se essa comédia "clownesca" fosse uma cortina que te possibilita ver a realidade de um modo não simplesmente nu e cru, porque isso seria somente sublinhar o que já está vermelho em letras garrafais. Assim, o fim do jogo na realidade é mais uma charada que você decifra como ela te interessa: você dizer que não entendeu, dizer que é uma reflexão sobre o poder, ou dizer simplesmente que é uma situação dramática cômica que no final fica um pouquinho pesada.
Com relação ao projeto, ele nasceu com a estréia em Belém do Pará e o fim do jogo da vida dele é em Bauru, são duas pontas como se você caminhasse de um lugar para outro. Durante o nosso período de trabalho, o diretor sempre falava no ensaios, "é o fim, mas o fim é cheio de vida", e nós chegamos ao fim da vida desse espetáculo cheios de vida. Não é que ele morre, ele concluí uma fase que é a de apresentação, mas eu tenho certeza que o fim do jogo permanecerá dentro de todas as pessoas que estiveram envolvidas nesse trabalho, porque ele ecoa dentro de todos nós e vai continuar.
Pergunta - Como é essa experiência de troca de personagens entre vocês dois?
Carvalho - Ele é quem gosta desse troca-troca (risos).
Celulari - É extremamente estimulante (mais risos). Nós começamos a ensaiar o espetáculo sem saber o que iríamos fazer, na verdade. Durante dois meses nós fizemos assim, até que o Chiquinho (o diretor Francisco Medeiros) propôs que nós fizéssemos isso também no palco. Está sendo muito interessante, mas deu um medo danado porque isso é muito difícil neste tipo de espetáculo, onde estes dois personagens têm uma espécie de código de dramaturgia muito rápido, ágil, em que às vezes ficamos atrapalhados com o próprio texto. Então, isso nós provoca risos internos, que a platéia não participa muito porque desconcentra, mas que é uma delícia. Faz parte do tal do jogo a troca, a exposição ao erro e brincar com isso, aonde fica claro que a camisa não importa, a ação do jogo é o que interessa. Numa partida de futebol, por exemplo, os centroavantes de equipes opostas trocam as camisas e o jogo continua. É muito estimulante, a gente se permite o assalto ao trabalho do outro, dos gestos, e também vários pontos escondidos, porque um personagem é cego e a gente o faz de olho fechado, então o personagem que está de pé e enxerga leva vantagem sobre o outro.
E para o espectador, mesmo para aquele que não possa assistir duas vezes o espetáculo e não veja a alternância de atuações, mesmo assistindo uma das versões ele imagina a outra, o que também é muito estimulante. É a mesma coisa vista de outro ângulo, então, na verdade, é uma outra coisa.
Pergunta - Quando Beckett escreveu suas peças do teatro do absurdo havia um certo estranhamento de crítica e público quando o espetáculo era encenado. Hoje, seus textos são super aplaudidos pela crítica teatral e literária mundial, mas você acha que o público já recebe de uma forma melhor?
Celulari - Acho que Beckett nunca vai ser popular.
Bazarcultura - Mas no seu caso há um chamariz muito forte que são os trabalhos que você fez na TV. Como esse grande público que assiste você nas novelas tem recebido a peça?
Celulari - A primeira coisa é o seguinte, se o produto não for bom, pode ser Shakespeare, pode ser ator shakespeariano, global ou ator internacional, se o produto não for bom não adianta. Posso te dar quinhentos exemplos de colegas no auge do sucesso, em teatros com preços populares, que não tiveram bons resultados finais e fracassaram. Como eu já disse, o Beckett não vai ser popular nunca, mas se tornou um clássico, já sobrevive a mais de 50 anos, e hoje, para se ter uma idéia, existem cerca de 80 espetáculos dele sendo encenados pelo mundo. Há interesse pelo Beckett então, entretanto não é o mesmo interesse do público de televisão, mas seja qual for o motivo que leve o cidadão ao teatro, seja o nome de um ator ou ator conhecido, seja porque existe um filho ou primo seu representando, enfim, o mais importante é ir, porque o que o espectador vai ver será teatro, e se não for bem feito ele não vai gostar. Então, o melhor divulgador do espetáculo é o boca-a-boca, é quem vê. O Cacá tem uma frase que é ótima, que "teatro é um shopping", no qual você deve apresentar os mais diversos produtos.
Bazarcultura - Falando nisso, o espetáculo de vocês passou mesmo por um shopping em São Paulo (Teatro Folha no Shopping Pátio Higienópolis).
Celulari - É, por exemplo, era lá um produto (riso amarelo). Também nos fizemos juntos Molière, um outro tipo de público, agora, é um outro produto, é o Beckett. Tem que haver a comédia, tem que haver a tragédia, tem que haver o teatro do absurdo, experimental, baudeville, musical, tem que ter de tudo. Aí você pode dizer assim, "vamos fazer só o que o público quer", então o ator global só vai fazer isso. Isso não existe, eu não quero, paro minha carreira se tiver que fazer só aquilo que o público espera de mim. Mas acho que já aprenderam, com os últimos anos, que eu gosto de fazer umas coisas meio estranhas, então se é bem feito o cara vai lá me ver. Estar fazendo o Beckett é da maior importância para a gente, é por que isso fazemos. Agora, que isso seja tão simples quanto fazer uma comédia popular, é claro que não é. Mas há público, porque apresentamos o espetáculo de uma maneira clownesca, direta, não elaboramos dando esta suposta importância ao Beckett, a gente não ficou tentando dar a "pausa beckettiana", "o silêncio beckettiano", a gente quer é comunicar porque esse texto é importante para as pessoas de hoje, quem paga o ingresso tem que entender alguma coisa. Seja o que for que a pessoa entender, a comunicação desse texto para nós só tem razão se for direta, sem adaptação, é o texto integral.
Carvalho - Acho que o teatro tem pensar a cultura trazendo para a população alimento de toda e qualquer natureza, por outro lado, essa colocação de que o Beckett é um autor denso, ou como o público vai reagir com isso, em parte tem fundamento mas é uma colocação perigosa também, vindo da imprensa e de um determinado tipo de intelectualidade que faz essa afirmativa porque pode estar subestimando a capacidade de inteligência e emoção daqueles que vão assistir o espetáculo, é reduzir a capacidade deles, e isso é péssimo.
Por outro lado, para o espectador acostumado com a Tanajura na novela das oito, com a cultura direta que invade as casas via TV, ou pode-se dizer uma sub-cultura, enfim, se você só dá esse tipo de opção, você continua alimentando o sono das pessoas, e isso é delicadíssimo. Então, é muito bonito quando você vê uma pessoa com uma bagagem, com uma capacidade de tocar um projeto muito mais de outra natureza, optar por fazer o Beckett, optar por fazer Don Juan do Molière. Através desse tipo de ação, você lê um tipo de coisa que não é o usar aquilo que se conquistou com uma exposição do seu trabalho, é levar outro tipo de alimento para as pessoas, nesse sentido com uma função importantíssima. Nesse caso, pode ser que esse tipo de atrativo, ou seja, o histórico do Edson, do Cacá, da Malu, do Lafayette, do Beckett, leve um outro tipo de público que possa beber de um outro tipo de espetáculo que normalmente não é oferecido.
Celulari - Só queria fazer um aparte nisso. Muitas vezes eu ouvi desse público de televisão, após o espetáculo, coisas emocionantes, como "eu nunca tinha vindo ao teatro, eu acompanho seu trabalho na televisão, te curto, peguei minha esposa e vim ao teatro, e ela também pela primeira vez, mas se eu soubesse que o teatro era isso, eu teria vindo muito antes". Bacana, não?
Carvalho - E outros podem também não entender, mas não importa, uma parte repercute, ecoará numa próxima vez que voltarem ao teatro. Nós vivemos dormindo, estamos acostumados, todo dia tomamos Lexotan através da televisão, da informação, ou seja, vamos criando um mundo absurdo. É importante que de vez em quando alguém diga "ahnn" (faz um gesto de sacudir), aí você acorda no outro dia do mesmo jeito e recebe outro "ahnn" (o mesmo gesto), até que talvez chegue uma hora que você acorde mesmo. Essa é a tragédia do viver.
Pergunta - Por que vocês escolheram esse texto?
Carvalho - Porque eu acredito ser importante que de vez em quando alguém diga "ahnn" para ver se alguém acorda (risos).
Celulari - Estreamos no dia 4, 5 de setembro o espetáculo em Belém, e dia 11 as torres caíram, foi um fim de um jogo. O ACM cai, sai do Senado, o fim de outro tipo de jogo. Você pode associar muito.
Carvalho - Sempre existe algum poder que está no centro e seu jogo vai terminando. É preciso renovar as cartas e o jogadores.
Celulari - Na Argentina agora, coitados, estão vivendo isso.
Carvalho - Alguma coisa está acontecendo, alguma coisa está seguindo seu caminho. Inexoravelmente vai acabar. Você pode dizer, são só outros jogadores, porém terrivelmente talvez faça parte da condição humana subverter as regras do jogo para se levar vantagem, se criará um jogo viciado novamente. Talvez faça parte desse ciclo. Assim, que sentido tem isso tudo? No fim, talvez a gente olhe para trás e diga: talvez isso tudo tenha sido para nada. E será péssimo. Por isso, tenho que valorizar cada minuto, eu não posso estar dormindo, tenho que ficar acordado.
Bazarcultura - A partir de Hamm, a figura principal no texto, podem ser feitas duas associações com seu nome: o "ham actor", que em inglês significa canastrão, e uma referência a Hamlet, um dos personagens mais importantes da história do teatro. Esse jogo de palavras é intencional, pois o Hamm tem essas duas facetas na peça. Como é o desafio de interpretar Hamm, alguém que navega entre o egocentrismo tolo e a plena consciência da existência humana?
Celulari - Na verdade não existe um personagem principal na peça, existe aquele que está no centro no palco, e isto não quer dizer que ele esteja mesmo, pois ele é cego. Todo o tempo ele pergunta, "estou no centro?", e o outro diz que sim, mas como ele pode ter certeza que sim? E essa mutação faz parte do "clownesco". O centro é quem mais enxerga. Aquele que está assistenciando, o aprendiz, quer ir embora o tempo todo, repete "eu vou te deixar, eu vou te deixar", mas não consegue porque talvez exista um interesse dele estar no centro. Então, essas impossibilidades, essa aproximação do fim, essa consciência, essa crueldade desse tal destino de um nada para um nada, vai dando ao Hamm uma plenitude que o faz jogar tudo para o ar mesmo. Essas mutações são referentes a este jogo que ele mantém com o Clóvis, e ao contrário também, pois o Clóvis tem um momento no qual toma as rédeas do jogo. Procuramos, nessa versão mais "clownesca", acentuar isso como um jogo cênico, um jogo de pegada, estimulante também para o espectador, e não apenas intelectualmente. Só um se mexe, dois estão na lata de lixo sem pernas, e outro está cego e paralítico na cadeira de rodas. Então quando o Hamm pede, "dá uma voltinha comigo!", aquele bloco vai se mexer, o centro vai mudar de lugar, e uma volta, mesmo naquele espaço mínimo no palco, é uma volta ao mundo, ao mundo deles. E existem dois espaços, dois olhos, que são duas janelas, aonde se vê o lá fora.
Carvalho - E lá fora está tudo chumbo, como Bauru (risos).
Celulari - Uma janela você vê o mar, a outra a terra. Toda a hora o cego quer saber, "como é que está lá fora?" - "Zero, Zero e Zero".
Carvalho - "As ondas chumbo" (risos).
Celulari - Tá feia a coisa lá fora! "E no horizonte? Nada no horizonte?"
Carvalho - "O que poderia haver no horizonte para a gente ver?"
Pergunta - Quais os projetos futuros de vocês, depois de encerrar a peça aqui em Bauru?
Celulari - Eu vou descansar algumas semanas e devo estar fazendo uma novela na Globo no segundo semestre. Gostaria de tocar um projeto de cinema, tenho três convites - no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais - um deles vou tentar fazer nesse intervalo. Fiz poucos mas bons filmes, e já faz algum tempo que eu não participo.
Carvalho - Vou fazer agora o espetáculo "O Homem com a Flor na Boca", faço uma curta temporada em Ribeirão Preto, e vou dia 20 de maio para a Itália. Ao voltar, no fim de junho, vou direto para Belém dirigir uma montagem de Hamlet. Depois, em setembro, um espetáculo que eu fiz assistência de direção na Itália, vem para o Brasil abrindo o Festival de Teatro de Porto Alegre.
Pergunta - Vão voltar a encenar o Beckett?
Carvalho - Eu penso em trabalhar de novo com o Beckett, penso muito também trabalhar com Pirandello, que eu tenho grande paixão, esses autores que tocam alguma coisa que não seja simplesmente um discurso, Calvino, por exemplo.
Pergunta - O que vocês acham que Beckett deixa ou ensina hoje?
Celulari - Para mim, eu acho que é ver as coisas, os modos, enfim, pensar sobre aquilo que você vive, faz, se relaciona. A peça, se você ver "Esperando Godot", "A Última Gravação", "Dias Felizes", "Fim do Jogo", são sobre o mesmo tema, tudo a mesma coisa. Ele insiste, insiste, e é como se focasse e focasse, e sobrasse o humano, cheio de sujeiras e besteiras, quantas vezes risíveis. É por isso que o espetáculo tem esse filão do riso presente. Quando o Beckett dirigia suas próprias peças, e passava por países que não conhecia a cultura ou que não havia morado, ele chamava um comediante para assistir um ensaio e saber se naquela tradução, ou na maneira como estava sendo encenada uma cena em particular que deveria resultar em humor, seria mesmo entendida como humor, era importante o humor. A exposição do humano risível. Então, eu acho que a genialidade dele, que o transformou já em um autor clássico em tão poucos anos, é o que ele vale nessa essência, com olhos tão agudos, tão cruéis, duros, verdadeiros, ele conseguiu ver e aprofundar coisas que muitos autores abordaram, mas ele fez de uma maneira que o torna único.
Carvalho - O Beckett é um grande cirurgião da cegueira geral, ele nós faz enxergar, rindo, refletindo, cheio de poesia, crueza, trapalhada. Através de situações absurdas, ele te contextualiza, te faz enxergar de um modo cheio de inteligência. Os grandes autores só se tornam grandes porque só colocam a condição humana.
(Matéria realizada para o site Bazarcultura)
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